8.01.2006

A ESCOLHA É SUA

Se você pudesse escolher, claro, passaria a vida de bom humor. Aquele estado de espírito que mantém você bem disposto, uma alegria pertinho da superfície, pronta para aflorar à mais fraquinha das piadas. Você, aliás, hoje, está um ótimo contador de piadas. Contador, que nada: inventor. Você – com este seu bom humor – está afiadíssimo, criativo, tudo é oportunidade para uma grande tirada. Seus amigos percebem, ficam olhando pra você com um ar de O que foi que deu nele? - já percebeu? Você já acordou assim, de bom humor. Foi carinhoso com a mulher, brincou com o cachorro, nem se importou de ter pisado no cocô que ele fez no tapete novo da sala. E olha que você estava descalço. Foi pro trabalho a pé, de tão bem disposto, e não houve nada de novo, não. Nem hoje, nem ontem: nenhum aumento, promoção, nova oportunidade, nem mesmo uma insinuação da gostozona que voltou de férias. Nada disso, pura rotina, pura, rasa, medíocre mesmice; e você não é medíocre pra gostar da mediocridade nem da mesmice - tanto assim que, vira e mexe, se irrita com essas duas, quer mudar tudo, fazer tudo diferente. Fica até de mau humor. Mas hoje, não: nada abalou este sorriso envolvente. O papo da mesa é que está ficando um pouco chato, engraçado, todos estavam de bom humor, você – especialmente - estava tão bem humorado, o que foi que fez você mudar de humor assim de repente?

Podendo escolher, não perderia seu tempo procurando um livro interessante quando as livrarias só oferecem Como manter a calma, Como vencer na vida, Como vencer o stress, Como ter sempre bom humor, Como ser líder em vez de chefe, Como chefiar seu chefe, Como comer e emagrecer, como, como, como, o quê, o quê, o quê... Quem? Você? Quando?

Aquela revista já traz pergunta e resposta na capa: “COMO ACABAR COM O CRIME ORGANIZADO? SEIS PASSOS INFALÍVEIS, BASEADOS NA EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL E NA LÓGICA DE ESPECIALISTAS”.

Se você pudesse escolher, iría pra casa agora, amaria sua mulher perdidamente, deixaria a TV ligada no programa que fosse o mais imbecil de todos – sem perder tempo com essa terrível escolha -, comeria batatas fritas e dormiria sobre a cerveja derramada, um pé com a meia, o outro, sem. Sua mulher está, de fato, ao seu lado, mas algo rodeia você, sai de dentro da sua cabeça e passeia à volta da sua cabeça, lhe expõe cenários de vida e de morte, dos caminhos de poder - poder subir, parar, desaparecer, meter a porrada no primeiro que se atrevesse. Sua mulher se queixa de um cansaço que afirma nunca ter sentido, um vazio, uma vontade de chorar, ela não sabe expressar bem o que está sentindo. Perguntar se não é TPM seria reduzi-la a alguém sem escolha; você não faz isso e, se pudesse, daria um abraço nela, diria a ela, amanhã é outro dia, você vai ver, isso passa, tudo se resolve, é só ter calma, já passamos por tanta...

Na TV, um exército dizimou trinta e sete crianças.

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