4.07.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario BenevidesBrasil, 2005 - 2006

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- SEIS –

Rita saiu quase que escorraçada depois da sua fala. Por mais que tenha frisado ser casada com um brasileiro, mãe de filho brasileiro e residente no Brasil havia quinze anos, seu sotaque de americana causou desconforto em alguns nacionalistas, extremados demais para discutir a questão indígena com uma americana.

Perguntaram-lhe da sua experiência e formação; disse-lhes dos seus títulos e citou suas experiências no Brasil e na Bolívia – que foram consideradas episódicas por um dos presentes, tendo o Presidente da República em pessoa dito a ela que já tinham levado em consideração suas contribuições e que ela por favor desse a vez a outros presentes.

Rita agradeceu e foi saindo do auditório da presidência; seu marido, Ricardo V, foi atrás dela, às pressas, percebendo a mágoa da mulher com o visível desinteresse e debochados bocejos que percebera enquanto se expressava. O General, que havia insistido para que Ricardo V fosse àquele encontro, foi atrás dele e, atrás do General, Sérgia, mãe de Ricardo V. Dona Eduarda foi saindo um pouco mais vagarosamente que os demais. Alguém pediu a palavra, mas iniciou-se um burburinho. O General voltou trazendo Ricardo V esbaforido e ofendido pelo braço e deu a seguinte notícia:

- Esse nosso encontro vazou; todo mundo está sabendo e há uma multidão lá fora. ONGs, movimentos, estudantes, o diabo.

O Presidente da República rapidamente acionou a Segurança do Palácio; o chefe da Segurança pediu-lhe calma: “A situação está sob controle”. O Presidente deu a notícia aos demais e pediu que o General tomasse a palavra – e brincou: “O Governo, não; só a palavra, General.”.

O General expressou-se pela manutenção das reservas indígenas dentro das fronteiras e sob a responsabilidade exclusivamente do Brasil. Propôs que fosse feita uma revisão geral da estrutura orçamentária do país, e que as nações interessadas na independência das tribos fossem convidadas a contribuir com recursos para manter as tribos protegidas, em seus limites de terra, saúde e bem estar, conservadas suas tradições. Uns balançaram a cabeça; outros aplaudiram. O Presidente da República disse “Muito bem, está aceita a proposta”. Foi quando Rita e Dona Eduarda retornaram; o General, percebendo os olhos mareados de Rita, pediu a Ricardo V que tomasse a palavra.

Ricardo V convidou a mulher para que o acompanhasse no palanque; ela não quis. Alguém chegou de fora correndo e foi ao ouvido do Presidente; este fez um ar preocupado, baixou a cabeça e disse:

- Mande-os entrar.

Ricardo V percebeu o mal estar e aguardou. Cerca de duzentas pessoas tiveram acesso ao ambiente; mantiveram-se de pé e, aos poucos, foram-se sentando.

Deram a palavra a Ricardo V novamente. Enquanto ele foi falando, mais umas trezentas pessoas entraram no auditório recentemente reformado e foram tomando seus assentos. Algumas preferiram ficar de pé.

Ricardo V disse assim:

- O que está acontecendo já era para ter acontecido há muitos anos e é só a ponta do iceberg. Muito bom que tenha havido um começo de solução para o tráfico em 2014 e que a situação nesse aspecto esteja hoje melhor do que foi até 2010. Porém, o avanço nas instituições e procedimentos da democracia brasileira, as práticas da política, foi pífio depois da crise de 2005 e 2006.

- Pífio? – um senador indignou-se. “Pífio” – repetiu Ricardo V.

Alguns da platéia aplaudiram; um chiado partido da mesa pediu silêncio. Mais pessoas entraram no ambiente; alguns esparsos aplausos para o que Ricardo V havia dito. Este continuou:

- O tráfico já começou a se reorganizar novamente.

- Protesto! – um deputado presente à mesa interrompeu. O tráfico não está na pauta! Não foi considerado crítico, não foi incluído na lista de consenso! Desde 2014, como declarou mesmo o senhor, nobre escritor futurólogo, a questão foi equacionada!

Ricardo retomou a palavra:

- A questão das drogas só teve uma solução temporária; atenção, deputado, atenção, senhores: este silêncio coletivo diz muito mais coisas do que se pensa. Cuidado, senhoras e senhores: é como se tivéssemos perdido um elo qualquer com aquilo que sonhamos. Tem sido assim sucessivamente. O descrédito com relação à política em 2005 e 2006 foi o começo dessa sensação, deste... vazio. Individual e coletivo.

- Superado! Foi superado! – gritou o mesmo deputado, batendo com as mãos sobre a mesa.

- Temporariamente, deputado; só temporariamente. Ainda viveríamos, como vivemos e vivenciamos, terríveis crises, incluindo a convulsão social de 2010.

- Ora, o senhor vai voltar no tempo? Viemos aqui para tratar do presente e do futuro!

- Deputado, o senhor não ouviu o que disse Dona Eduarda?

Fez-se um breve silêncio.

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