8.15.2006

SOCIEDADE ANÔNIMA

Era só o começo. Era antes.

Os órgãos de comunicação atuantes no país foram advertidos de que qualquer tentativa de manipulação da opinião pública, omissão, divulgação irresponsável e/ou falsa de notícias seria respondida por ampla divulgação via organismos paralelos independentes e um boicote generalizado. A iniciativa privada acabou por acatar o convite para que provesse os recursos para o combate ao crime organizado e seus derivados, parcialmente como investimento, parcialmente como substituição de impostos – primeiro, unilateralmente decidida; depois, divulgada e negociada com o poder público. O repasse de verbas foi através de um fundo gerido por particulares e publicamente auditado por vários dos mesmos anteriormente advertidos veículos de comunicação.

Enquanto o poder público continuava a abarrotar as já hiper-lotadas cadeias, parte daqueles recursos da iniciativa privada possibilitou contratar a construção de maiores e melhores presídios. Sua expansão era planejada por meio de estatísticas, continuamente aferidas no decorrer dos fatos. Nas novas prisões, à exceção de desbalanceamentos momentâneos, só toleráveis por um ou dois dias, nunca uma cela seria habitada por mais nem menos que três presos – porque um, mais que pouco, seria caro; dois, uma fórmula boa demais para a cumplicidade revoltosa; a partir de quatro foi considerado superpopulação; e a infância mostrava que dois geralmente se aliam e alijam um terceiro, que passa a se defender, minando os planos dos outros dois. Foi instituído o trabalho remunerado para presidiários. Parte da remuneração ia para as famílias dos presos e parte era depositada para uso deles, depois do cumprimento de suas penas. Nos presídios, toda e qualquer conversa telefônica passou a ser ouvida e automaticamente gravada, em tempo real, local e remotamente, sempre com o conhecimento prévio de quem conversava. Posteriormente, essas práticas incorporaram-se à legislação. Apesar do veemente protesto de alguns setores da sociedade informada e instruída – “Assim, todo mundo vai querer ir pra cadeia” -, insistiram em programas de educação e re-enquadramento social. “Sangue bão” foi uma das expressões que desapareceram. A reclusão e reorientação de menores de 16 anos infratores baseou-se em substancial assistência médica, psicológica e educacional. Casos tidos como patológicos e sem retorno foram encaminhados para centros de reclusão especiais, onde o exercício de atividades produtivas era incentivado. Do lado de fora, por meio da gestão de instituições religiosas previamente analisadas, investigadas e qualificadas, desenvolveram-se programas de assistência a viciados para maximizar a cura e minimizar a dependência. Agências de propaganda e marketing realizaram, por conta própria e sem remuneração, campanhas de educação e alerta contra o uso de drogas pesadas. A maconha foi liberada. A exploração de pontos para a sua venda foi concedida a ex-traficantes cumprindo penas em regime semi-aberto, compatíveis com seus atos praticados no período do tráfico, desde que estes não incluíssem crimes de morte, tortura ou seqüestro. Todas as demais drogas traficadas foram mantidas na ilegalidade e assim combatidas, até que índices do nível de educação e qualidade de vida da grande maioria da população alcançassem padrões mundialmente tidos como satisfatórios. Já com o envolvimento do poder público, para combater o tráfico remanescente, o armamento, preparo e remuneração das forças armadas federais e das polícias federal e estaduais teve incremento expressivo, simultaneamente a estratégias de aceleração de substituição, julgamento e punição dos corruptos. Diminuição da pena, programas de reabilitação e re-enquadramento social, proteção e troca de identidade foram concedidos a alguns criminosos, em troca de confissão e delação. As fontes de renda foram ainda suplementadas por meio do reingresso incentivado e condicional de dinheiro anterior e ilicitamente expatriado, perdão parcial e condicional à sonegação e aporte voluntário de pessoas naturais do país e exterior. Para inibir a continuada proliferação do vício, organizações não-governamentais passaram a prover assistência psico-social a famílias ou pessoas de baixa renda e/ou de desempregados e também àquelas que se candidatassem ao programa em troca de trabalho voluntário ou a contribuir com recursos, financeiros ou não.

Tudo em meio a tenebrosos atos de terror. Em resposta, persistência.

Nomes de candidatos corruptos circulavam em listas, na mídia e boca-a-boca, especialmente nas regiões mais ermas e/ou de analfabetismo pronunciado. Eles ocupam hoje algumas das celas das novas prisões. Sempre em número de três.

Grandes fornecedoras de obras e serviços públicos foram convencidas a firmar de público um pacto que liquidou com velhos esquemas de corrupção e acerto prévio do resultado de concorrências. Inibiu novos. Funcionários públicos de histórico honrado foram prestigiados com homenagens e aumento de salários. Agências supra-partidárias foram encarregadas da gestão da carreira do funcionalismo público, que passou a competir em perspectivas de ascensão por mérito e resultados com as típicas do setor privado. A demissão de funcionários públicos incompetentes e não dispostos a progredir e colaborar passou a ser praticada. Empresas estatais e privadas concordaram com a criação de um fundo para desempregados, preparando os dispostos ao reingresso no mercado produtivo e suportando-os minimamente até que ele ocorresse.

Para a remodelagem estrutural do país, com o poder público já devidamente ciente de suas atribuições e responsabilidades e com uma visibilidade jamais vivida de seus atos, com verbas da parcial ou integral concessão à iniciativa privada da exploração de empresas públicas por prazo determinado, regulada por agências supra-partidárias fortalecidas, além da proveniente de uma racional reforma tributária, foi implantado um amplo programa de valorização do magistério, com ênfase nos salários e no preparo. A complementação educacional a domicílio foi oferecida a famílias e pessoas de baixa renda e/ou sem acesso a expressões artístico-culturais. Banidos foram os exames de avaliação de cursos por meio das provas a que se submetiam seus alunos e ex-alunos. As cotas para minorias foram substituídas por cursos de preparação para o vestibular para os estudantes em escolas públicas, até que estas atingissem o devido grau de competitividade com as particulares.

A verdadeira droga foi finalmente banida: a ignorância.

Antes era só o começo. Antes era 2006.

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