2.21.2007

ATOLADOS

Pode até ter sido de cesariana ou parto normal – mas todos já atolaram, pelo menos uma vez na vida.

Atolamento de carro é o mais comum. A sensação de impotência é inversamente proporcional à de vexame. Se houver dois surfistas e um estivador nas proximidades, eles serão potentes por você, minha amiga, meu amigo; em contrapartida, de nada adiantará passar filtro solar, blush ou óleo de peroba. Quando a solidão for total, prepare-se: o buraco é mesmo mais embaixo.

Quero ver é atolar de avião. Dos pequenos, com nome inocente. Xingu, por exemplo - de seis lugares. A você, coube aquele assento bem à direita de quem entra, atrás da porta, onde, a depender da estatura de quem senta, a posição, de cabeça baixa, mais que resignada, é humilhante; e, sob o banco, encontra-se o vaso sanitário – uma privada que, pela ausência de portas que não a que do acesso às nuvens, é pública. Todos rezam, não para que o avião não caia, mas, sim, para que ninguém precise usá-la durante o vôo.

Nas nuvens, a nave não atolará; apenas chacoalhará. Atolado ficará você, tendo nas mãos o terço, a estrela de David, a figa e o patuá.

Chove lá fora, sem que isso seja verso de samba-canção. O comandante está tranqüilo. Brasileiro, sabe que algumas leis pegam e outras, não. As da Física, por exemplo: na opinião dele, mestre dos ares, principalmente dos ares de quem fez ponta em cinema mudo, poucas devem ser levadas a sério. Por isso ele acende um cigarro, e a cinza vai direto no seu olho esquerdo, que está sentado lá mesmo, no banco sobre o vaso, que você se esforça para não utilizar. Você, que está com as mãos ocupadas: agora, com a Bíblia e o Corão. Você – que se dizia ateu.

Dentro de mais uns minutos estaremos no Galeão – grande Tom Jobim, que só aterrissava em aeroporto grande, com pista asfaltada, sem problemas nem de inundação, onde o que balançava era o corpo da morena.

A pista onde o Xingu vai posar é de saibro.

O intrépido e desafiador comandante apaga seu cigarro sobre o vidro do altímetro e pousa. E evolui, sobre a pista, em linha reta. E vai manobrar. E atola. Pouco importa: você e os demais, que entraram tripulantes, deixam a nave incandescente como sobreviventes. Parabéns.

E você trafega agora dentro de uma camionete traçada, quatro por quatro, e observa galinhas de angola no piso do cerrado do estado do Tocantins e é observado pelas vacas do Nelson Rodrigues a repetir o bordão da piada sobre a hiena: “De quê ri este animal?”.

É de alivio, donas vacas.

Quando do seu retorno, a chuva continua, como continuou pelos dias que você lá permaneceu, em São Salvador do Tocantins, junto com seus bravos 1.500 habitantes, excluídas as vacas e as galinhas, de Angola e outras, com pintas ou não.

O comandante, com cara de pinguço, elogia o avião. Estamos em 2007 – e ele afirma, orgulhoso: “Este modelo é de 1989, ou então de 1988; não me lembro.”. Tudo para tranqüilizar você, que entra por ultimo na aeronave e retoma seu nobre assento sobre o equipamento onde covardes e corajosos se igualam. O avião segue até o fim da pista, vagarosamente, para fazer o retorno e decolar. O comandante, com seu cigarro pendurado no canto da boca, chama a manobra de “pião”. E com toda a razão: atolamos de novo, na pista de saibro.

Quem conta essa historia, se conta, foi porque sobreviveu. A tudo: a dois atolamentos, ao desdenhar profundo e filosófico das vacas, à indiferença absoluta das galinhas, aos cigarros do comandante e ao girar com as mãos do super-treinado co-piloto das pás das – ou serão “dos”? – hélices. Sobreviveu como todos os demais passageiros, incluindo os profissionais generosamente não-enterrados, graças à equipe de resgate: um estivador saudoso de um cais já faz tempo, que cavou e cavou e não nos fez o favor de enterrar em vida piloto e seu co, e, por mais correta que tenha sido a cova que cavou para deixar livre a roda dianteira da, por assim dizer, aeronave, não foi possível ao desafiante das leis naturais, dito comandante, desfazer seu atolamento reincidente; e meninos de treze a quinze anos, um deles pilotando um trator. Avião rebocado, decolado antes do tempo para não atolar de novo, pousamos em Brasília, 19 horas.

Ouvir a Hora do Brasil foi reconfortante.

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