7.30.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZENOVE –

Era ainda 2006. Rita voltara de Orlando com Ricardo VI. Encontraram-se no aeroporto de Brasília. Ricardo V beijou a mulher e o filho, desajeitada e apaixonadamente. Haviam optado, em um telefonema, enquanto Rita e Ricardo VI ainda estavam em companhia da mãe de Rita, na Flórida, por fazer o trajeto até Minaçu de automóvel. Uma ponte fora inaugurada no ano anterior, facilitando o acesso de Colinas do Sul a Minaçu, e já havia um bom trecho asfaltado a partir de Brasília para se percorrer o caminho em cerca de quatro a cinco horas.

Na ida de Minaçu a Brasília, enquanto dirigia a camionete moderna e potente para a época, Ricardo V ia-se despedindo da sua solidão. Estava com saudades, como dissera a mais de uma pessoa em Minaçu. Saudades de Rita e do filho.

No trecho não asfaltado, quase bateu de frente com um caminhão, que se deslocava em velocidade totalmente incompatível e incoerente com as condições da estrada e a paisagem. Passado o susto, um felino negro, reluzente, pequeno e bonito, ágil, cruzou seu caminho. Parou para urinar sob o sol desnudo, potente, imponente, a fazer dele, já vencido pela bexiga, homem de cabeça baixa e nuca exposta e submissa aos raios viris da estrela do planeta.

Voltou ao automóvel, abriu a porta traseira da camionete, mastigou um dos sanduíches que uma das empregadas que o mimavam havia preparado, bebeu quase que de um gole só o conteúdo de meia garrafa plástica de água mineral, respirou fundo, arrotou, bateu a porta traseira, abriu a dianteira.

Alguma coisa chamou sua atenção. Estava perdido. Sou mesmo um distraído de merda, como é que vou chegar a tempo? Desesperou-se, pôs o rosto nas mãos, passou as mãos nervosamente nos cabelos, levantou a cabeça novamente. E aí sim surpreendeu-se de verdade: um homem de pé, muito louro e muito alto, camisa branca amarrotada meio solta e meio presa a uma justa calça jeans fotografou-o - a ele, Ricardo Coração dos Outros V, ainda em pleno gozo do anonimato e da recente urinada e subseqüente aflição da sensação de estar perdido no meio da paisagem agreste do cerrado e das chapadas do centro-oeste brasileiro, por trás da camionete de origem japonesa. Vermelha. Como sua nuca e seu rosto, que tanto queriam suar e não conseguiam: não havia umidade suficiente.

Ricardo moveu-se contornando o carro e avançando na direção do fotógrafo - que se fora. Para onde? Ricardo V não sabia. Entretanto, aliviou-se de novo: percebeu que não havia se perdido, apenas por pura memória: é um incorrigível distraído e ao mesmo tempo confiante em excesso da memória visual e sua sensibilidade, revelada principalmente no dom para o violão que herdou de Ricardo Coração dos Outros, que fugiu com Olga, que viveu com ela não muito longe dali, em torno de cem anos antes daqueles momentos em que se sentia exalando e respirando poeira, queijo, trigo e urina, uma espécie de medo dentro de si, no rosto e na nuca, intensa vermelhidão, secura na garganta e o desagradável desconhecimento somado à surpresa de ter sido fotografado por alguém misterioso e fugidio.

De nada disso falou a Rita, no caminho de volta a Minaçu, depois de pernoitar em hotel suntuoso e prematuramente velhusco na capital brasileira. Mas, sem que ela e o pequeno filho pudessem compreender porque, Ricardo Coração dos Outros V, em todo o percurso, falava e ouvia o que lhe era dito movendo a cabeça de um lado ao outro, procurando, muito mais que por caminhões e felinos, ou mesmo um lugar para esvaziar a bexiga, um fotógrafo.
Quem diabos era aquele merda? – assim registrou em seus memoriais no hard-disk do note-book sobre a mesa de seu quarto, assim que chegou de vola para casa.

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