7.15.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZESSETE –

Aos 55 anos, Ricardo IV estava com um caso complicado. Nada advocatício; nada mais que um caso; um caso de amor, que tinha de esconder de Sérgia, das gêmeas e do filho. (O neto ainda era quase um bebê.) Do outro lado, isto é, do lado dela, da amante, o que Ricardo IV queria era o extremo oposto e exposto: impressionar. Provocará certo desconforto isto ser agora revelado, em 2020, pois ele está vivo, como viva está sua mulher, Sérgia. Mas tudo aconteceu há 15 anos; era 2005 – tempo em que a Internet fazia quase o mesmo papel, já com grande eficiência, que fazem hoje a Tera-portal Mundial (TPM©) e sua concorrente, a 1012.

No motel, Ricardo Coração dos Outros IV acessou a Internet pelo terminal disponível no quarto e devidamente conectado – diferencial oferecido por aquela rede de motéis (pertencente a um partido político, em nome de um de seus avalistas) em relação à concorrência. Durante o banho da amante (seu nome não pode ser revelado), procurou por um tema que ela – médica – precisava pesquisar. (Só para agradar, impressionar, expor-se - no gênero amante-companheiro.) Sem querer, por intrincadas vias, Ricardo IV achou um pouco da história de seu bisavô, Ricardo Coração dos Outros (primeiro e único, em vários aspectos) na rede, levando a ele, Ricardo Coração dos Outros IV, em nave liberta de virtual foguete propulsor, a um passado que relutava em visitar, de sua origem mulata e irregular, aventureira, surgida de um ímpeto da bisavó, Olga, que arrastou o bisavô violonista e compositor até Cavalcante, separada de Minaçu (cidade inexistente no tempo dos bisavós) por serras, planaltos e águas, Minaçu, onde o filho, Ricardo V, resolvera morar, por conta de uma americana curiosa pelo que restara da tribo avá-canoeiro.

Quantos pensamentos se apresentam em tão poucos momentos, quantas lembranças?, perguntava-se em flashes muito rápidos a médica que tomava banho e não queria lembrar do namorado, enquanto seu amante permanecia no quarto da suíte do motel, sem que ela pudesse saber de quantos pensamentos e lembranças se passavam na cabeça dele naqueles instantes, enquanto ela se ensaboava e se ensaboava e se ensaboava, sem saber do que, afinal, queria e precisava tanto limpar-se, purificar-se.

- É como se eu tivesse aprendido a verdadeiramente fazer amor, compreender o sexo, com você.

- Por quê? – ela perguntou a Ricardo IV, na primeira vez em que ficaram juntos e sozinhos e nus, um mês antes, após a consumação do primeiro intercurso entre eles, na terminologia que ele lembrava, não sabia se dos livros de Direito dele, de Sociologia de Sérgia ou de Medicina dela, sua namorada, sonho não sonhado por ele, ele, que bem vivia bom e sensual casamento com a mulher, Sérgia, mãe das gêmeas e do filho, todos tão queridos.

(Toda a teoria libertadora de Sérgia, ele tinha certeza, cairia por terra se e quando ela soubesse do caso dele com... Não se pode revelar o nome.)

- Pela naturalidade que você tem de tirar a roupa, de ficar nua, de me amar, de levantar e sair andando nua pra fazer xixi – Ricardo IV respondeu, naquela primeira vez dos dois.

- Mas não é assim com sua mulher? Não foi assim com suas outras namoradas? Não é assim, não é simples desse jeito, não é normal fazer amor, ficarmos nus, tomar banho, fazer xixi?

Era ainda o tempo da AIDS, mas já havia bons medicamentos para a manter controlada, pelo menos para quem, contraída a doença, tivesse acesso a eles. Eram também os anos do Viagra. Ricardo IV era homem de sorte: ainda não tivera contato com nenhuma das duas terríveis doenças e respectivos medicamentos para o simples ato de amar. E era o tempo áureo da camisinha, o preservativo masculino, que valia mais que a mais benta das águas, mais que a mais benzida das hóstias (Ricardo IV e Sérgia são católicos).

Sentou-se nu, na cama, depois de anotar em uma caderneta de bolso sobre a mesa o endereço da Internet onde encontrara uma tese que podia interessar à namorada, e alisou seus bigodes negros, seus lábios grossos, e pensou: “Gosto de ser mulato.”

Sua amante finalmente saiu de dentro do banheiro, nua, passando uma toalha no corpo e trazendo outra, enrolada nos cabelos. Morena, sexy, muito sexy.

Ricardo IV, sentado na beira da cama, disse:

- Eu te amo.

Ao celular.

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