7.08.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZESSEIS –

Atravessar o Paranaíba só não foi pior do que teria sido navegá-lo longitudinalmente, na direção norte. “Sabe lá Deus como, conseguimos atravessar o rio e chegar à outra margem, à outra província: Goiás! Para quê e para onde exatamente, não sabemos – e como é bom não saber!”. Pela caligrafia destoante da que se atribui a Ricardo Coração dos Outros e pelo tom romântico e aventuresco, supõe-se que esse trecho dos escritos achados da odisséia de Ricardo e Olga fosse dela e não dele.

Daí para frente, percebe-se que tomaram rumo pelos caminhos rasgados em tempos idos, quando aquele chão era todo tupi-guarani, de algumas de suas diferentes famílias, diferentes aldeias, variadas tribos, e foi virando Anhangüera.

Anhangüera, Bartolomeu Bueno, pai; Anhangüera, Bartolomeu Bueno da Silva, filho - paulistas que atravessaram aquele chão até o rio Araguaia e voltaram e encontraram a tribo do povo Goiá. Goiá; Goiás. Pai e filho fizeram o trajeto em 1682; trajeto que o filho repetiria sem o pai, quarenta anos depois. Anhangüera: Diabo Velho ou Espírito Maligno - assim os teriam batizado os Goiás.

Em outros trechos daqueles escritos, percebe-se o descontentamento e desconforto de Ricardo. Por exemplo: “Uma desgraceira é o que é a vida de gente que não a planeja, que não herda, ou, quando herda, desdenha ou não sabe do tamanho da herança, ou a desafia - seja ela dinheiro, talento ou porcaria.”.

Como conta Lima Barreto, Ricardo era homem da Zona Norte do Rio de Janeiro, mulato, discriminado por causa do violão e, às tantas, após muita insistência e sacrifício e infindáveis saraus, admirado, até em Botafogo, seu grande sonho de conquista, pelas modinhas que compunha, com o mesmo malvisto violão. Metera-se na revolta contra Floriano do lado dele, governista, completamente desconfortável – como provavelmente teria sido, não se sabe se em maior ou menor grau, se tivesse ficado do lado oposto, contra Floriano.

Agora, trilhava caminhos e outros desconfortos jamais imaginados nem desejados, em companhia de mulher que tão somente conhecia, antes do rompante que ambos tiveram ao se encontrarem após deixarem Policarpo à própria sorte em respeito à sua dignidade, com a qual simplesmente compartilhava alguns laços de social convívio, sendo o principal o próprio Policarpo Quaresma, aluno de violão de Ricardo e padrinho de Olga.

Mas - agora - amava aquela mulher; percebera nela uma aventura nunca imaginada e que com ela ia dividindo.

Muito difícil saber qual dos desafios teria sido maior que o outro: se o de Policarpo Quaresma, que, em sua fase entusiástica pelas coisas pátrias, propôs que o Tupi-guarani passasse a ser a língua oficial brasileira (e pagou caro por isso); ou se o deles, que, tão urbanos, cosmopolitas da capital do Brasil, saíram sem rumo ou destino, sem a mínima noção geográfica do país onde nasceram, a penetrar interiores tão inóspitos, indígenas, montanhosos, caudalosos, tenebrosos, a, muito mais que arrancar mato do chão, no chão se agacharem a fazer suas necessidades, a comer com as mãos, a conviver com gente das mais variadas origens, tropeiros tocando boiada, buscando ouro, evitando tocaia, a ficar dias e noites sem banho, a se banharem alucinados na frente de quem quer que fosse, molhando as vestes e, ao mesmo tempo, exibindo seios e bundas e abraços a quem quer que estivesse com e como eles, nas águas de um rio ou debaixo de agressoras e prazerosas e sensuais e adoráveis chuvas.

Uma beira de rio, uma tenda, uma fogueira, uma aguardente, às vezes tudo isso desamedrontava a noite ou aplacava o sol ou uma dor nas entranhas da barriga ou da cabeça ou do próprio medo ou da própria fome.

Amavam-se às noites sem pudor dos gemidos, mais de exaustão que de prazer, várias vezes foi assim, porque assim Ricardo deixou registrado em versos apagados e amarelecidos, pela chuva, pelo sol.

Em uma passagem, está escrito, na mesma caligrafia que se supõe (e só pode ser) de Olga:

“Hoje, soltei um traque na frente dele; acho que ele ouviu. Mas, graças a Deus, ventava!”

E a história do Brasil ia acontecendo – e o que isso importava de fato a eles e àqueles outros tropeiros e aventureiros como eles?

Pois naquelas páginas da insana travessia do Rio Paranaíba à província de Goiás e seu caminhar longitudinal pelos caminhos dos Anhangüera, em meio a desabafos e confidências, Ricardo Coração dos Outros deixou o seguinte sexteto, sem pauta musical:

Morresse eu agora
Morreria em mim agora
Aquilo que mais me foi felicidade:
Essa loucura,
Essa doçuraDesvairada insanidade.

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