7.23.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGI NOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZOITO –

Descobriram que o ouro ainda existia, mas não era sua vocação a mineração com mercúrio nem a vida para sempre nômade. Cavalcante já alcançara a condição de Comarca. Tinha comércio, importava toucinho, açúcar, aguardente, sal, tecidos; exportava gado. Gado – por que não? A terra do cerrado não é boa, mas viram muitas vacas e muitos bois por lá – magrinhos, mas viram, e gado, tocado, anda; podia chegar na Bahia. Viram que as modinhas de Ricardo ficariam para saraus só dos dois ou de pouquíssimos outros, peregrinos como eles, fazendeiros e sitiantes já estabelecidos, quilombolas kalungas, índios aculturados. Com os não-aculturados, era preciso cuidado – pois davam muito mais trabalho para morrer ou aquietar-se em aldeias que haviam dado os caiapós dos tempos dos Anhangüera.

A fundição do Arraial de São Felix havia sido transferida para Cavalcante. Fabricavam-se machados, enxadas, artefatos. As últimas economias foram para uma porção de terra na beira do rio Tocantins, onde era possível pescar, cultivar a terra, derrubando a mata e a capoeira, fazendo lenha, tocando fogo, tudo de maio a setembro, período seco, de secura na boca e tontura na cabeça, para plantar arroz e milho primeiro e depois feijão durante as chuvas, de outubro até abril. Esse clima é o mesmo até hoje, e o método de cultivo da terra ainda permaneceu até a primeira década deste século XXI, quando cessaram as queimadas do solo brasileiro.

Viram muitos rostos tomados pela bexiga. Deram sorte de terem sido vacinados no Rio de Janeiro, recurso que ficou disponível ainda no império (1804, nem eram nascidos), apesar do pouco caso tanto dos imperadores quanto dos republicanos com a saúde, desde aqueles tempos até bem pouco tempo; apesar da vacinação ter sido hábito ignorado pelas autoridades e população, tão desinformada – mas Olga e Ricardo Coração dos Outros eram esclarecidos.

Viram muitas faces famintas, corpos deformados, mentes débeis, tudo da desnutrição, porque não houve política de abastecimento nem no Segundo Império, nem na República, até a primeira década deste século XXI. Mas houve pelo menos um governante de outrora com visão: Maurício de Nassau, em 15 de abril de 1640, ordenou que nenhum senhor de engenho começasse a produção na safra seguinte (agosto) sem ter primeiro plantado 300 covas de mandioca por cada negro-negra que possuísse. Havia que dar de comer aos escravos, porque, caso contrário, não os haveria.

Casaram-se na Igreja.

Em 1900, Olga teve um desarranjo intestinal que durou dias e noites, tendo sobrevivido não se sabe se por ajuda de prático habilidoso, rezadeira milagrosa ou se por erva de pagé feiticeiro. (Para Olga, viúva de médico.) Passaram bom tempo quase que só comendo peixe, tendo muito ainda a aprender. Comprar vaquinhas e bois, com que dinheiro? Como ter acesso aos bens que pai e marido haviam deixado para Olga, naquele fim de mundo? Compraram fiado, abriram uma venda, venderam roupa feita por Olga, plantaram mais pra comer que vender, pois quase todos plantavam pra comer. Vender para a capital da província ou para a Bahia ou o Pará era tão complicado e caro, que ninguém trabalhava mais para ganhar mais porque, se produzissem mais, desperdiçariam mais. Assim foi em muitos recantos do Brasil, inclusive naquela região, até a primeira década deste século XXI. Na opinião de Ricardo V, como consta em seu best-seller prevendo a revolução de 2017, “A cultura da fome não está na preguiça nem em nenhum outro dos tantos motivos apregoados por profissionais da política, mas na falta de infra-estrutura, na mais óbvia percepção de que é preciso existir mercado que corresponda à produção, descoberta que foi dada ao chamado agro-negócio que despontou na virada dos séculos XX e XXI, inibida a pequenos agricultores, sabe-se lá se por burrice ou maldade.”.

Algum preparo Ricardo e Olga trouxeram da capital da república: sabiam aprender; sabiam ensinar. Nessa troca, que não envolveu moeda alguma, criaram amizades, criaram talentos desconhecidos para comprar um boi e uma vaca, mais duas vacas, dois bois, semear a terra no período seco e plantar no chuvoso, comer peixe com farinha, transportar bois até a Bahia, beber e vender leite das suas vacas, viajar ao Rio e resgatar a herança de Olga e resistir de lá não permanecer e retornar e descobrir dentro de si pessoas que jamais pensaram que existissem. Inovaram: plantaram trigo, comeram pão – incomum, na região, naquele tempo. Associavam-se: a escravatura se fora e o capitalismo ainda não chegara. Família, agregado, era assim que se vivia.

Tiveram Ricardo Coração dos Outros II em clima de grande festa; permaneciam milagrosamente distantes dos conflitos entre mineiros, estancieiros, e entre estes e os índios; por opção, distanciaram-se também da república, das desavenças entre políticos, teorias de uns, baixezas de outros. Descobriram o gosto de morar naquele lugar tão inóspito e ao mesmo tempo deslumbrante, no sopé da Chapada dos Veadeiros. Assim foi.

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