7.01.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO QUINZE –

Depois da incompreensível mas incisiva insistência dos patrocinadores americanos de seus escritos para que permanecessem morando em Minaçu, em 2006, Ricardo V passou a caminhar pela cidade em horários variados, sem dar nenhuma satisfação à mulher, Rita – que se magoou com o distanciamento do marido e partiu para Orlando, levando o filho, Ricardo VI, para visitar sua avó americana. Ricardo V ficou exatamente como queria ficar: só.

Percebia aos poucos que gostava de permanecer ali; de andar pelas ruas de casas quase iguais na vila construída pela estatal da primeira hidrelétrica; pelas do centro, que lhe passavam uma inexplicável sensação de escuridão, mesmo às duas da tarde; de visitar comunidades reassentadas pelas hidrelétricas e outras, como vilas de ex-garimpeiros; de observar conflitos entre as empresas das hidrelétricas e movimentos que se postavam como defensores dos atingidos por elas; dos boatos sobre infiltrações de estrangeiros em busca sabe-se lá de que riqueza material ou sociológica ou mística; do permanente questionamento sobre a mina de amianto crisotila, em torno da qual a cidade surgira; de voltar para sua casa de madeira e ar condicionado ligado a toda potência e deitar-se no escuro, incomodado com as notícias locais da poderosa, rica e temida agiotagem, de vendetas, assassinatos a sangue frio, matadores de aluguel. Era um homem local, definitivamente não globalizado, ainda que assistisse à tv.

Custou a compreender intimamente as razões que o levavam a crer tão profundamente que a revolução de idéias, da política amadora, surgiria ali.

As moças de bicicleta e as moças de motocicleta. Gente como ele, às vezes, no meio da tarde, sem fazer nada, encostada num muro. Um lugar parado; uma vegetação parada, seca, àquela época do ano. Mas ainda verde e, quando era verde, a paisagem era muito bonita. Mulheres humildes, de trinta a quarenta anos, aparentando mais, de postura dócil e firme, ao mesmo tempo. Uma geração local de adolescentes criativa, independente. Jovens profissionais, vindos de várias partes do país, mas muito principalmente de Goiânia, com sólida formação. Minaçu: para aquele carioca, um mistério.

Em casa, era mimado, por duas empregadas domésticas educadas e bonitas, uma muito loura e a outra, feita de mistura de imensa felicidade: mulata, índia, alta; “ela tem um bundão” – vivia repetindo em seu íntimo a fala de um personagem de Mar Morto, de Jorge Amado, que lera aos treze anos.

Racionalizava: não queria mais cidades grandes; sentia frio, no Sul; as capitais do Nordeste já eram cidades grandes e as do seu interior, pobres e quentes e áridas mais que suportaria. Havia Orlando, mas era longe, muito longe, Orlando; principalmente, demasiadamente diferente de tudo que podia assimilar como lugar de se morar. Praia: não há mar, em Minaçu! Mas consigo viver sem ele, misteriosamente para mim, que tanto gosto do mar – registrou Ricardo V em alguns de seus desorganizados arquivos eletrônicos. Viajava com freqüência - mas era para Minaçu que voltava.

Publicou seu livro em 2009. Em 2010, Ricardo desapontou-se, ao perceber que a convulsão não era nem de perto a revolução que previra para 2017, nascida do interior do Brasil, do seu Centro-oeste. A convulsão foi o que se sabe: um quebra-quebra generalizado, um trocar de tiros insano nas cidades grandes, mais confrontos armados em regiões rurais, até mais desenvolvidas que aquela. Políticos a se acusarem, a se defenderem e a se esbofetearem sem pudor ou valentia, missões estrangeiras, dinheiro emprestado pelo mundo, campanhas de desarmamento, distribuição emergencial de alimentos, racionamento de energia, acordos com o tráfico, legalização parcial das drogas, empregos para ex-traficantes, um clima falso de falsa trégua. Em Minaçu, nem um tiro sequer, a não ser os costumeiros, das vendetas, etc.. Custou a compreender porque diziam – seu editor, a crítica, várias pessoas em diferentes lugares - que as vendas do livro dispararam exatamente por causa da convulsão, se esta era o oposto do que imaginara: nada de violência; nada de metrópoles inspirando a grande sonhada transformação; idéias, interiores, uma voz de dentro da alma brasileira a sussurrar primeiro e a depois se revelar, uníssona, consistente, macia, bonita - de tão persuasiva e sedutora, convincente a tal ponto que invencível.

Mas ainda não era 2017.

Bares muito diferentes dos que conhecia ao redor do mundo, mas bares; para um boêmio quase abstêmio, como ele, onde tocava seu violão sem qualquer compromisso, eram bons.

E foi em Minaçu que Ricardo Coração dos Outros V foi ficando, às vezes só, às vezes em companhia da mulher e do filho, das empregadas, da pequena sociedade que freqüentava – juiz, transformadora juíza, promotor, prefeito, chefes das usinas e da mineração de amianto, professora de geografia, tenente, empresária de festas, exímia cozinheira; agiotas, matadores, prepotentes. Com estes, bom dia, bom dia; não mais – mas não menos. Os donos e freqüentadores dos bares. A todos via por um filtro de pensamento distante e às vezes próximo; por todos era gostado, mesmo antes do sucesso do seu livro, que possivelmente trouxe alguma curiosidade do resto do país pela região onde seu autor morava.

Mas era a região do cerrado - que sequer precisava de seu livro para chamar atenção.

Mas Minaçu era longe, muito longe, Minaçu.

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