8.22.2005

O FIO

Ninguém diz o que quer porque todo mundo ouve o que quer. Só seria possível se dizer aquilo que se queria se alguém estivesse disposto a ouvir o que se disse. Mas não é assim que funciona. Pelo antiquado telefone convencional, o fio é o culpado; pelo celular ou pessoalmente, provavelmente, sua ausência é que é – e tudo fica por um fio.

Ela chegou em casa muito contente e ele também não ficou triste, ao vê-la de biquíni fio dental, os cabelos, molhados e salgados da praia. Ela estava de férias, ele, não. Beijaram-se e abraçaram-se e ele gostou muito de pensar que seu terno seria lavado mais de sal que da poeira das ruas; mais do suor dela do que dele próprio. Ela sentiu o corpo tocado pelo tecido do terno e teve arrepios agradáveis, mais ainda no rosto, pela barba que já despontava no rosto dele, pelo cheiro do perfume dele, agora esmaecido no rosto ensaboado várias vezes durante o dia, o sal da pele dele misturado com o do mar, que permanecia em seu corpo, no corpo dela.

Ela procurou um lugar na praia onde não fosse obrigada a conviver com nenhuma das tribos: dos adolescentes que haviam chegado das aulas, dos intelectuais de plantão, das peruas, das turbinadas, dos gringos, dos fortões, dos pivetes. A solução foi caminhar, caminhar, caminhar; só parava para mergulhar, entrar na água devagar, sentindo um friozinho, dobrando os joelhos, fazendo xixi discretamente, até que mergulhava de cabeça, levantava-se, sacudia os cabelos, dava três braçadas de costas, pegava uma onda e saia do mar, para caminhar novamente.

Durante o dia, ele só tinha ficado chateado quando o chefe o chamou para lhe passar uma tarefa, nada demais, um tanto banal, e desandou a falar mal do médico que vinha-lhe tratando da rinite, vivia de nariz entupido, cadê meu lenço?, um horror. Seu aumento ainda não vai sair dessa vez, tenha calma, e muito cuidado com suas propostas, você ainda está longe do poder da empresa, não se meta a besta, fique na sua, que eu sou seu aliado; mas lembre-se: bom cabrito não berra. Ele sossegou-se e pensou, não vou perder meu tempo com babaca. Em casa, ele disse a ela, te amo, você está linda, um tesão.

Depois do abraço e do beijo, ela fungou, disse que devia ser da água do mar, que o sal seca as mucosas e é muito bom contra rinite, mas devia estar acontecendo uma adaptação, uma espécie de choque, afinal, era seu primeiro dia de férias, ainda estava impregnada de escritório, de cheiro de tailleur, não era o do terno dele, não. Ela contou a ele que havia se chateado um pouco ao entardecer, quando já se preparava para voltar pra casa e ouviu de um grupo de caras metidos a fortes, de um gênero que ela detesta, o comentário, essa aí vale a pena, eu até que trabalhava, por ela, eu até vestia um terno. Bom cabrito não berra, foi o que eu pensei, ela, em casa, disse a ele, e completou: não vou perder meu tempo com babaca. Você está um charme, te amo, te adoro, ela disse a ele.

Ele disse a ela, vá logo tomar um banho, você está suja, oleosa, mal-cheirosa do mar. Ela respondeu, quem está sujo, mal-cheiroso e oleoso é você, com essa catinga insuportável de escritório. Daí pra frente, o que se ouviu foi barulho de porta batendo. Depois, um celular tocou. Alguém comentou que um cachorro latiu. Mas havia a sirene, como saber?

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