8.26.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E TRÊS –

A médica terminou o caso, pois percebeu que o amor dele, Ricardo IV, seria sempre de Sérgia. Mas não sem dor para ele, porque algo especial havia acontecido: uma naturalidade que jamais vivera com a mulher. E não sem culpa, porque gostava perdidamente de Sérgia e a ela sentia-se no dever de ser fiel – palavra que não lhe agradava, mas não encontrava outra melhor para definir a monogamia à qual se sentia obrigado. Por que não falavam sobre isso? Se ela era tão liberal, capaz de rever seus pontos de vista com naturalidade? Se ambos eram bem-nascidos e criados no Rio de Janeiro, ainda que com todas as suas mazelas, ainda assim, a terra de Leila Diniz, Vinicius de Moraes e tantos outros libertários, salgados do mar à volta e à beira do caos urbano? Por que não conversava com Sérgia, que era tão inconformista e libertária e irreverente como os ícones da cidade do Corcovado, capaz de desnudar talvez como nenhuma outra toda e qualquer hipocrisia, desde antes do Redentor, desde Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto, Machado de Assis – desde sempre? Ou Sérgia e ele seriam somente meros teóricos da liberdade e da naturalidade? Entristecia-se ainda um ano depois com o fim do seu caso amoroso com a médica, quando se deu conta de que bebia saborosa cerveja debaixo de uma árvore frondosa, no restaurante Samina, ao meio-dia, em Minaçu, naquele finzinho de 2006. Ele e Sérgia, daquela vez, hospedaram-se no Executivo, na esquina da Rua 2 com a Avenida Maranhão, porque Sarah Shaw Almanendez Chermont, mãe de Rita, ficara na casa de Rita e Ricardo V. Sarah, Sérgia e Rita caminhavam pela Avenida Maranhão, espiando o comércio interiorano.

Depois de deixar a família em frente ao Samina (exceto Ricardo VI, que ficara com as empregadas, em casa), Ricardo V foi ao encontro do Tenente da Polícia Militar, a convite deste. O Tenente lhe disse:

- Encontrei esse caderno no banheiro do La Ventana (bar nas proximidades da praia artificial). Acho que está em Inglês e Espanhol, mas percebi que seu nome e o de Dona Rita estão nele.

Ricardo V pediu para ver o caderno. Disse ao Tenente:

- Está em Inglês e Italiano. Posso ficar com ele?

Depois de hesitar um pouco, o Tenente lhe respondeu:

- Pode. Mas o Senhor vai me prometer que vai me devolver ele. E mais uma coisa: quero que o Senhor traduza ele pra mim, pode ser?

Ricardo disse “Claro que sim”, assinou um termo de responsabilidade e levou o caderno consigo. Entrou no carro, abriu as janelas e começou a ler as anotações. Percebeu ser um relato minucioso dos seus passos logo quando da sua chegada a Minaçu. Ao término do que parecia ser a primeira parte das anotações, estava escrito, em Inglês, “Lugar totalmente inadequado para a finalidade pretendida.” A segunda parte era escrita em péssima caligrafia, que misturava Inglês rudimentar a um Italiano chulo. Mas o principal objeto era, novamente, ele, Ricardo V (Rita era somente citada como sua mulher). Não conseguiu fazer nenhuma outra conexão com aquele interesse de absurdos espiões seguindo seus passos na longínqua Minaçu que não seus escritos. Estava convencido de que fora a universidade americana que resolvera vigiá-lo. Sentiu-se enganado, um idiota, nas mãos de seus patrocinadores. “Finalidade pretendida”: seria ela a revolução de mentalidade, por ele imaginada e proposta em seus escritos?

Quando juntou-se à família, a sogra perguntou-lhe, em um misto de Inglês, Espanhol e Português:

- “Óculos solar”; li isso num loja. Shouldn’t it be “óculos solares”?

- Sim. Um óculo, dois óculos – respondeu-lhe o genro.

- Por isso, “lentes de contatos” – a sogra deduziu.

- Não, explicou-lhe o genro. O certo é “Lentes de contato”.

Ricardo IV, então, tomou a palavra do filho e iniciou dificílima explicação gramatical para os óculos “solares” e as lentes “de contato” para Sarah, que fez ares de contida desaprovação e ficou em silêncio. Almoçaram “peixe na telha” – um “filhote”, espécie então em extinção dos rios brasileiros, de pesca proibida, que às vezes chegava a pesar mais de cem quilos. A comida estava bem gostosa e, apesar do sol torturante, havia uma brisa e a sombra da árvore era uma benção. Sarah e Sérgia entreolharam-se, meio que perdoando os filhos por morarem naquele fim de mundo. (Mas não muito.) “Lugar totalmente inadequado para a finalidade pretendida.” A frase e o insólito diário não deixavam Ricardo V em paz. Cruzou seus talheres e disse:

- Vamos ver quem engana quem.

E então ouviu “What?”, “O quê?”, “Como?”. Desculpou-se por ter pensado em voz alta. Ricardo IV pediu e pagou a conta e foram embora, cada qual com seus pensamentos.

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