8.19.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E DOIS–

“Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1922.
Senhores Meus Pais:
Com vosso devido perdão, não entendo como tivestes a coragem de deixar a capital para viverdes como viveis, no meio do nada e sem recursos. (Mesmo sabedor do vosso desgosto com o triste fim de Policarpo Quaresma, padrinho da Senhora Minha Mãe, além de amigo e aluno de violão do Senhor Meu Pai.) Inda que bem me lembre da história que me contastes, isto é, da vontade de Minha Mãe de viver uma aventura, e que compreenda vosso desgosto por terdes, Meu Pai, servido ao exército de Floriano contra vossa vontade, mesmo que inda agora a situação na capital do país esteja tão conturbada, que cidade linda e fervorosa é a vossa! Acabo de assistir às comemorações do centenário da independência, que contaram, inclusive, com a presença do Presidente de Portugal, o Dr. Antônio José de Almeida, dentre outros mui ilustres estrangeiros. Pois que o Conde D´Eu, que vinha da França especialmente para os festejos, reconciliado, desde que, em setembro de 1920, o Sr. Epitácio Pessoa revogou o decreto de banimento da família imperial brasileira, morreu a bordo do navio que o trazia!
Já Dona Chiquinha Gonzaga conta agora com setenta e três anos. Seus chorinhos ainda se ouvem pela cidade e me dão muita alegria; vos agradeço pelos versos que me escrevestes, Meu Pai, aludindo aos choros dessa admirável Senhora. Soube que, em 1903 (eu com meus três anos), Dona Chiquinha Gonzaga viu, em Berlim, composições suas gravadas e editadas por um tal de Fred Figner, sem a devida autorização. Pois o citado Sr. Figner foi processado e, depois de profundas mudanças na legislação brasileira, aos 27 de setembro de 1917, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, foi criada a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, com Dona Chiquinha fazendo parte da Diretoria. Senhor meu pai, mandai-me vossos cadernos musicais, que vou registrá-los na S.B.A.T., para que vossos direitos de compositor sejam preservados para sempre.
Por falar em “direitos”: como me valeram vossas aulas em nossa casa! Ingressei na Universidade do Rio de Janeiro, criada há dois anos por decreto do Presidente da República; formar-me-ei Bacharel em Direito!
Já vos contei? Assisti (estupefato!) à derrubada do Morro do Castelo! Vós acreditais nisso, em tal tresloucada decisão? É o progresso!
Narro-vos agora acerca do “Levante do Forte de Copacabana” - do que li e do que vi.
Creio que mesmo aí em Cavalcante o Senhor Meu Pai e a Senhora Minha Mãe terão acompanhado pelo menos em parte as notícias a respeito. Se assim não for, vos faço sabedores de que, antes, o Marechal Hermes da Fonseca tomara o partido de militares de Pernambuco que haviam hostilizado parentes do Senhor Epitácio Pessoa. Pois que tal fato causou o fechamento do Clube Militar e a prisão do seu Presidente, que vem a ser o próprio Marechal Hermes - simplesmente o ex-Presidente da República! Tudo por causa das "Cartas Falsas", nas quais o Marechal foi chamado de "sargentão sem compostura". (Dizem por aí que tais cartas teriam sido escritas pelo Senhor Artur Bernardes.) Pois que veio o “levante” – o qual foi derrotado. A senha para o início da revolução seria um tiro de pólvora seca - que deveria ser disparado do Forte de Copacabana. Uma contra-senha, então, seria dada por tiros vindos das demais fortificações participantes. O tiro de Copacabana de fato houve, mas sem ouvir resposta que fosse. Assim, às onze da manhã, o Tenente Siqueira Campos comunicou aos seus aliados que haviam perdido a revolução. Em meio ao suspense e antes da marcha para o Palácio do Catete, em dado instante, no Forte, um soldado subiu num mastro para retirar a própria bandeira brasileira, que foi recortada em 28 pedaços! Acreditai, Senhor Meu Pai, Senhora Minha Mãe: a bandeira nacional foi recortada em 28 pedaços!
Despeço-me de vós, meus amados Pai e Mãe, pois agora vou noivar. Meu coração não é mais “dos outros”: já pertence, como sabeis, a Maria Cristina, que conhecereis quando aqui vierdes. Volto a vos escrever em breve; prometo-vos.
Do vosso filho,
Ricardo Coração dos Outros II.”
98 anos após a carta de Ricardo II aos seus pais, permanece a dúvida: seriam 28 os “18 do Forte”? Eduardo Gomes, que participou da revolta quando era um daqueles tenentes, quando já Brigadeiro, declarou que eram apenas 12 – e há registros de que teriam sido 11. Mais recentemente, a história ficou mais fácil e exata, ainda que menos heróica. Com tudo gravado, por exemplo, sabe-se exatamente quantos políticos receberam propina a título de tráfego de votos e outros artigos no chamado “mensalão” de 2005. O que, aliás, não faz como não fez a menor diferença. Pois que a diferença só veio a acontecer de fato depois da Revolução de 2017.

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