8.06.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE –

Giulio Vincenzo não gostava de que seu sobrenome fosse um segundo nome próprio, principalmente por tê-lo herdado do pai que jamais conheceu, por mórbida paixão da mãe, Sophia, que desprezou o próprio sobrenome, Lorenzi, para não caracterizar o que era de todo óbvio: Giulio era filho de mãe solteira.

Chegara à profissão de antropólogo por tortuosas vias. Tentara medicina, sem conseguir ingressar na faculdade; depois, veterinária, mas, ao perder o primeiro período por insuficiência, desistiu; conseguiu, com grande dificuldade, uma vaga em sociologia – que abandonou, porque perdia o sono às noites, já que este lhe tomava os dias, nas aulas, quando sua concentração era uma corrente de vento que entrava pela janela, cheia de elos desatados. Ingressou no exército e seguiu em missão de paz para Serra Leoa. Viu tanta desgraça ao lado do renomado antropólogo Dr. Vincenzo (coincidência que, a princípio, tomara como maldita), de sobrenome Scarpini, que, quando este, ainda moço, desabou de febre e de frio e de morte ao lado dele, Giulio, encarregado de zelar pela vida do doutor, numa tarde de calor e poeira insuportáveis, decidiu enterrar-lhe por ali, só que sem a carteira de notas e documentos – que passaram a lhe acompanhar, com a devida troca de retratos e constante renovação das notas, desde a fuga e deserção daquele inferno humano até aqueles momentos, em que se encontrava no cerrado brasileiro, escondendo-se atrás de uma árvore, após ter sido flagrado pelo sujeito pago pela universidade para desenvolver uma tese maluca, a mesma universidade que contratara Giulio para fazer o que eles haviam chamado de “pesquisas paralelas”.

O eterno retorno. Da África, fugira para o Brasil, mais precisamente Rio de Janeiro, que atraía como atraiu e até hoje atrai estrangeiros de toda parte, nas mais diversas fases da sua história. Alguns a procuram quando sua fama é de tranqüilidade; outros, quando, mesmo ou porque, suas notícias são de risco e violência – como naquele 2006. Giulio fora em busca de mar, mulheres e oportunidades de exercer a profissão que conquistara pela morte do homem cuja vida dependera da sua proteção, contra a qual não cometera qualquer violência, morte que se deu ao seu lado, na ausência de outras testemunhas e que entendeu como dádiva divina. Conseguira ler poucas páginas de alguns dos livros do Doutor Scarpini, que agora era ele e, portanto, a ele, Giulio, pertenciam, ora com espanto, ora com a mesma sonolência dos bancos universitários que chegou a freqüentar. Mas o que lhe dava prazer de verdade eram as anotações de Vincenzo Scarpini em um caderno que trazia consigo dentro da mochila pendurada nos ombros e apoiada nas costas quando caiu sem vida. Não pelas desgraças humanas narradas pelo cientista que agora personificava, mas pela riqueza de detalhes, de expressões em latim, além de exclamações de alguém verdadeiramente apaixonado pelo que fazia. Essas exclamações é que entusiasmaram Giulio e que foram por ele incorporadas para compor sua personagem, o tipo que resolveu adotar para si, na pele do Doutor em antropologia, Signore Vincenzo Scarpini.

No Rio não conseguia parar de, às manhãs e tardes, zanzar pelos calçadões de Copacabana, Ipanema e Leblon; de, às noites, deixar-se preso a tulipas de chopes nos bares de Copacabana, abordado por prostitutas que lhe aquietavam os instintos e, às vezes, a alma; de, quando de dia novamente, voltar a caminhar em bermudas e tênis nos calçadões à beira da praia, quando pensava despertar a atenção de mulheres de variadas idades e se engraçava para algumas delas, sem, no entanto, lograr êxito - a não ser uma única vez, que veio a levar-lhe do Rio à Flórida. Namorou Fernanda por uma semana, quando passaram a maior parte do tempo trancados no quarto lateral do hotel de Copacabana, fazendo sexo a mais não poder, a conversar num ritmo de descombinação latina, com poucas e profundas pausas entremeadas por grandes atropelos de caudalosas e desconexas frases, até que ela lhe convidou:

- Vamos para Miami; lá se ganha em dólar.

Pararam mesmo foi em Orlando, onde se desentenderam, pois, lá, conseguiu realizar seu sonho de ser tomado por antropólogo, o renomado Doutor Vincenzo Scarpini, dado como desaparecido em Serra Leoa. Foi contratado, com a instrução de realizar pesquisas paralelas e secretas às de Ricardo Coração dos Outros V, com o mesmo tema, com o seguinte recado, explícito, firme, sem margens para dúvidas:

- Acompanhe os passos de Ricardo. Is that clear?

- Absolutely – Giulio respondeu, como aprendera com Fernanda, que passou a exercer outra profissão em Orlando e por lá permaneceu.

Assim foi o retorno de Giulio Vincenzo, filho de Sophia Lorenzi, vulgo Doutor Vincenzo Scarpini, ao Brasil, agora para a região do cerrado goiano, com escala na capital, Brasília – mesmo percurso que um certo Mr. Robert Preston Jr. fizera, à mando da mesma universidade, três anos antes, quando Ricardo V e Rita eram recém-chegados em Minaçu. Como era o período seco, a poeira estava de matar. “De volta ao pó” – pensou Giulio - ou “aquele merda”, como a ele Ricardo V se referira, sem que Giulio soubesse, ainda que assim se sentisse.

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