8.13.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E UM–


No começo, Rita já entendia quase todos os hábitos da cidade e com eles convivia – menos o “salão” (que ela pronunciava – como até hoje pronuncia – sem o til). Tivesse chegado antes da construção da segunda hidrelétrica – ou mesmo durante -, já estaria acostumada, ou ficaria ainda mais espantada com o hábito.

Antes da segunda hidrelétrica, Minaçu era ainda mais provinciana. Durante as obras, eram comuns os bailes organizados em diferentes locais da cidade, especialmente nas noites de sábado. Peões dançavam com engenheiras, engenheiros com sociólogas ou manicures, a população quase que em peso comparecia. Dançavam um ritmo que misturava música regional sertaneja - ou “Brazilian country music” - com alguma coisa parecida com rumba: era assim que parecia aos ouvidos de Rita e de seu conterrâneo Robert Preston Jr., ambos chegados depois da obra pronta e que jamais foram àqueles bailes; mas o ritmo ainda se ouvia em alguns bares e residências, em 2002 – quando Mr. Preston e Rita chegaram, sem nunca se conhecerem - e depois. (Um ano depois, nasceria Ricardo Coração dos Outros VI e Mr. Preston iría de carro até Brasília, fazendo o mesmo percurso de Ricardo V quando, em 2006, foi buscar mulher e filho chegados de Orlando e foi fotografado por Giulio Vincenzo, o falso Dr. Scarpini.) Porém, mesmo quando não havia um único mísero baile para se ir, o encontro vespertino das mulheres era no “salão” – o tradicional “salão de beleza”, tão comum em todas as cidades brasileiras, onde é igualmente comum a conversa entre mulheres, geralmente sobre a vida alheia.

Na Minaçu de depois da segunda hidrelétrica até hoje o hábito se mantém, mas não com a duração e intensidade dos tempos a ela anteriores. As tardes eram imensas – dificilmente havia o que se fazer, a não ser ir ao “salão”, onde duas cabeleireiras-manicures revezavam-se, penteando e “fazendo o pé” ou “fazendo a mão” de – quiçá – todas as mulheres minaçuanas do mundo – mas de uma forma organizada, pois nunca se soube de uma fila. Enquanto duas mulheres eram atendidas, outras esperavam abanando-se e servindo-se de café; e todas falavam ao mesmo tempo. O mesmo Brasil de “Memórias de um sargento de milícias” se repetia naquela vizinhança, onde casos de adultério terminados ou não em morte serviam de assunto por bom tempo.

Rita estava curiosa por conhecer o tal “salão”, ainda pouco compreendendo o sotaque do cerrado. Foi lá acompanhada da assistente social, residente em Minaçu por conta da segunda hidrelétrica e seus reassentamentos, que a levara com o marido, Ricardo V, a uma das comunidades rurais vizinhas. Que era uma tarde muito quente, não era novidade – mas Rita percebeu haver grande excitamento no lugar. Custou a entender: era a mesma história de um estrangeiro que se dissera “turista” por aquelas bandas e acompanhara a assistente social à mesma comunidade e depois fora denunciado por uma jornalista como “falso turista”. Aquela história era repetida em toda parte, inclusive na casa de Rita, tendo sido motivo de brigas do casal, pois Ricardo V desconfiava de planos de dominação da região por comunidades ou instituições norte-americanas – sendo que, às vezes, desconfiava de que o plano fosse do próprio estado americano, do país, os Estados Unidos da América. Ricardo VI já com dois, três anos, em 2005, 2006, e a mesma história ainda amolava a paz do casal – que só viria a conhecer a verdadeira história do falso turista por meio de Giulio Vincenzo, em 2006 – que não deixa de ser relacionada à revolução de 2017, como se verá.

Já em 1920, Ricardo II desembarcava de trem no Rio de Janeiro, capital da República e berço de seus pais, Ricardo Coração dos Outros e Olga, habitantes de Cavalcante, Goiás, onde ele nascera. Era o governo de Epitácio Pessoa. Naquele mesmo ano, foi realizado o recenseamento da população no Brasil, tendo sido contados trinta milhões, seiscentos e trinta e cinco mil, seiscentos e oitenta e cinco habitantes, dos quais um milhão, cento e cinqüenta e sete mil, oitocentos e setenta e três no Rio de Janeiro. Gente pra burro! – Ricardo II, com seus vinte anos, espantou-se. Mais ainda com as tropas na Avenida Rio Branco, perfiladas para receber os reis Alberto I e Elizabeth, da Bélgica. Dois anos depois, testemunharia o levante do Forte de Copacabana. Era demais para um pobre coração dos outros nascido em Cavalcante.

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