6.24.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO CATORZE –

Naquela manhã de 2016, Ricardo IV engoliu meio comprimido de Beta-fluoxetina, procurando melhorar o humor; chupou uma pastilha do tradicional hidróxido de alumínio; pôs na boca seu habitual comprimido de bi-metmorfina, para controle do peso; rechaçou o de alprazolam comparado, com medo de alguma perniciosa interação medicamentosa; mas não resistiu a uma doble-aspirina cubana, Garcia & Levitz’s Laboratories, porque estava com uma dor de cabeça em regime de ascensão. Tudo isso depois de beber café com leite vagarosamente, um suco de uva em pó concentrado diluído em água e mastigar sem apetite uma torrada e meia de pão. Não havia ninguém em casa, estava atrasado para a reunião com sua equipe de trabalho - mas era o sócio majoritário e sênior do escritório: que esperassem. O neto queria vir para o Rio para morar com ele e Sérgia. Seu maior cliente revelara-se um picareta, na véspera. O país beirava ao caos político outra vez. O buldogue deixara uma prenda molenta aos pés da sua cama, a qual ele calçara, pensando que fossem seus chinelos. E o filho, Ricardo V, não queria deixar de morar em Minaçu. Lá, seu filho famoso era tão famoso quanto o juiz, o prefeito... talvez fosse essa a estratégia do filho.

Foi para o banho como se o chuveiro fosse um tribunal de ética, que o condenaria por defender calhordas. Ou por ser egoísta - por não querer o neto por perto. Mas queria o filho, e o filho com o neto; pronto: tudo bem. Se assim fosse. A água quente e turbinada deu-lhe alívio, mas a desesperança persistia. Um desânimo, um súbito medo, como se fosse perder tudo de uma hora para outra, o apartamento, a conta no banco, as gêmeas. Uma solteira, a outra, casada – com aquela pessoa. De quem ele não gostava. Pior! – deu-se conta: de quem começava a gostar. Duro, admitir: era preconceituoso. Cheio de teorias, suas e de Sérgia; mas, os dois, preconceituosos. Duro, admitir.

Que diabos de camisa escolher? Sérgia, cadê você, esse serviço de arrumação, lavagem e passagem de roupa deveria incluir uns escolhedores, ou fornecer um cardápio de roupas a usar a cada dia da semana! Clean and Stuff. Bom nome. O país, essa cidade, ontem vi um dos empregados da Clean and Stuff sair daqui com aquele absurdo capacete, aquela ridícula armadura, as ruas em guerra, novamente! Coitado de quem tem que passar por elas, de andar pelas calçadas! Coitada dessa gente! Este armário, precisava ser tão grande? Que calça, Meu Deus, que calça?...

Um despreparado. É o que eu sou. Velho e despreparado, nem fui no estúdio, hoje, correr parado, me flexionar e alongar nos aparelhos. Estou um traste! Que saudade da fisioterapeuta, não devia tê-la ajudado a montar sua empresa, que imbecil eu fui, troquei a melhor fisioterapeuta do planeta por uma empresária que me vendeu essas merdas de aparelhos! Self-gym; que babaquice!

Resolveu que não iría ao escritório, que conversaria com todos por vídeo-conferência. Sua Π-ex-em (Personal Executive Manager – a letra grega Π recuperara seu território e se tornara um padrão para o P em Inglês - “pi”, exatamente naquele ano) lhe dissera para não fazer isso: - Os encontros presenciais serão fundamentais para que você amplie sua marca de liderança fundamentada na contextualização do seu carisma.

Só que, hoje, não vai dar. Como ir trabalhar sem calças? Na vídeo-conferência, poderei ficar sentado atrás da mesa o tempo todo; se bem que não é tão trabalhoso assim escolher um reles par de calças – e essa tecnologia toda há de me desnudar sem calças por trás da mesa. Senão essa tecnologia de merda, a vontade de ir ao banheiro! Como agora!

Finalmente vestiu-se e foi vagarosamente até o escritório do apartamento; conectou-se com a secretária dois minutos antes do horário da reunião e disse a ela:

- Vou me atrasar. Peça que me esperem por mais meia hora. Diga que, se eu não aparecer dentro de meia hora, foi porque algo de muito sério me aconteceu. Não, nada me aconteceu, por favor, fique calma. Respire fundo, isso passa. Não, não me aconteceu nada, tampouco diga a ninguém que algo me aconteceu, diga que... Olha, eu hoje estou doente, não estou passando bem. Façamos o seguinte: convoque todo mundo para uma vídeo-conferência, dentro de... doze minutos. Melhor assim. Depois decido se vou ou não ao escritório. Quer saber? Ainda não me acostumei com essa modernice de salão de trabalho, sinto falta da minha sala, minha grande mesa, meu computador de mesa, mesmo de meu lap top eu sinto saudades. Esses pontos de conexão tão... impessoais! Sem privacidade! O único lugar onde me sinto à vontade no escritório, atualmente, é na privada. Me desculpe a indiscrição, mas esse negócio de receber cliente numa sala de visitas com todo mundo em volta - ainda que a hipo-acústica impeça que nos escutem e a virtual-image nos mostre sorridentes mesmo quando a ponto de nos esfaquear -, sinceramente, que saudade de um bom escritório! Me conecte com eles, tá? Hoje eu não vou. Mas, antes, me conecte com a Geórgia, por favor. Ela mesma: minha Π-ex-em.

Sentiu o sinal da conexão. Ficou em dúvida: com quem eu gostaria de recuperar agora um pouco da minha auto-confiança perdida em três desesperadas corridas à privada?

Minha mulher ou a ex-em?

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