6.17.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO TREZE –

Mais pela novidade da estrada de ferro, cujo trecho de São Pedro de Uberabinha (Uberlândia, a partir de 1929) até Araguary havia sido inaugurado em 15 de novembro de 1896, iam deixando para o Leste Canudos e Ouro Preto e mais se aproximavam de Goiás. Araguary foi a estação final do trem da Mogyana, que haviam tomado em Campinas.

Alvará de 4 de abril de 1816 é que desanexara da Capitania de Goiás a região posteriormente conhecida por Triângulo Mineiro; de certa forma, já estavam em Goiás.

Quem desbravou a região foi Bartolomeu Bueno da Silva – o Anhanguera –, cujo objetivo era, exatamente, chegar a Goiás. Era a região dos Caiapós, que viviam emboscando os brancos, o que prejudicava a comunicação da província de Goiás com São Paulo. Em 1748, expedição que contou com ditos índios mansos expulsou os então donos da terra, caiapós. Formaram-se dezoito aldeias, ao longo da estrada que ligava São Paulo a Goiás: Anhanguera. Naquele 1897, se Ricardo e Olga soubessem que seu destino seria Goiás, teriam cortado caminho; mas sonhavam era com Minas.

Antônio Resende Costa, o Major do Córrego Fundo, foi quem demarcou as Sesmarias do Serrote e da Pedra Preta e apossou-se de um terreno entre as duas, que depois doou à Igreja, como patrimônio da Freguesia de Brejo Alegre, que ali se estabeleceu e se tornou Vila em 31 de Março de 1884 e, em 4 de agosto daquele ano, cidade. Na sessão da Assembléia Legislativa Provincial de 5 de agosto, emenda do Deputado Severino Navarro deu à cidade o nome que Ricardo e Olga conheceram: Araguary – assim sancionado por lei, pelo Barão de Camargos.

Ricardo Coração dos Outros e Olga viveram alguns meses em Araguary, antes de atravessar a fronteira para Goiás, ainda em 1897 - ano que, em 12 de dezembro, Ouro Preto perderia a condição da capital da Província de Minas Geraes para Cidade de Minas – que viria a se chamar, a partir de 1901, Belo Horizonte.

Como se vê, tudo era muito rápido, naquele tempo.

Para quem sabe e quem não sabe; e para que se estabeleça senão discórdia, pelo menos desconfiança deste relato – é para isso que servem relatos -, relembra-se mais.

Em 4 de março daquele 1897, Biriba – ou Prudente de Moraes -, recuperado, voltou ao seu cargo de Presidente da República. Se Floriano (falecido em 1895) deixara saudosos florianistas, a vertente jacobina da Revolução Francesa (1789) teve sua genealogia ideológica continuada em vários cantos, pelo menos aqui, no Brasil.

Os jacobinos brasileiros, que queriam uma república forte e capaz de enfrentar os fantasmas monarquistas que alimentavam seus pesadelos noturnos e acidezes estomacais diurnas, tiveram no soldado Marcelino seu mais exaltado herói. Em 5 de novembro, quando Biriba foi recepcionar o Espírito Santo, vindo da Bahia trazendo à bordo os primeiros vitoriosos contra Antônio Conselheiro, e a torcida era pró Floriano e Vitorino - um de seus saudosos, vice que mudara o governo a seu próprio contentamento durante a doença de Prudente -, Marcelino sacou de uma garrucha, que – dizem - falhou cinco vezes. Biriba afastou a garrucha – dizem – com sua cartola. Marcelino, antes de ser preso, esfaqueou mortalmente o Ministro da Guerra de Moraes, Marechal Bittencourt.

Tal noticiário chegava pelo telégrafo ou por passantes, migrantes, perdidos na história de suas vidas e permanentemente surpreendidos pela de seu país, tão recente e sangrenta república, aos olhos e ouvidos de Olga e Ricardo Coração dos Outros.

Já se haviam decidido por Goiás – a fronteira, tão próxima, os seduzia -, mas permaneciam por ali, vivendo de bordados de Olga e novas ou renovadas modinhas de Ricardo – que também desenvolvera especial talento para ferrar e selar burricos e cavalos.

Partiram, enfim. Cavalcante seria seu destino, mas ainda não o sabiam. Cavalcante, que, naquele tempo, era tão central, na Província de Goiás. Goiás, em 1988, já Estado da federação, teria parte de seu território convertida em outro Estado: Tocantins – que, em 1821, tivera um governo autônomo e, em 1920, houve quem tentasse de novo sua autonomia.

Ao cruzar a fronteira entre Minas e Goiás é que souberam das duas mortes: primeiro, de Armando, que deixava Olga oficialmente viúva, livre para se casar de direito com Ricardo; depois, do pai de Olga. As duas lhes foram noticiadas e transmitidas por telégrafo, por contatos, secretos em sua fantasia de casal apaixonado e fugitivo, que mantinham no Rio de Janeiro, capital da República. Escritos encontrados sem pauta musical com a caligrafia de Ricardo Coração dos Outros assim registraram aqueles momentos:

Rio Paranaíba,
Separaste
Duas vidas que começam
De duas outras que se findam
Nas minhas modestas contas,
Enquanto tantas são contadas
Em contas que não domino!
Ai, Rio Paranaíba,
Que tormentos e alegrias
Nos aguarda nosso destino?
És capaz de nos dizer,
Rio que vamos deixando

Às tontas ventanias
Deste nosso desatino?

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