6.04.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO ONZE –

O último capítulo da última novela de televisão foi ao ar em novembro de 2016. A estratégia foi forçar a mudança do hábito da população antes que esta o abandonasse. Pesquisas demonstravam que o descontentamento não era só com o tradicional (profissional) exercício da política. Da mais sofisticada mansão ao mais miserável casebre, se instalava um desinteresse pelo gênero. Até 2010, minimamente dois ou três atores e atrizes contracenavam com dez ou doze decoradores de falas e caretas; de lá para depois, extinguiram de vez os talentos e impingiram ao público uma grande quantidade de textos ruins e figurantes péssimos; entretanto, a fórmula ia vingando: o deixa pra lá conseguia sufocar o azedume da revolta com a repetição, tanto de fatos, como de fantasias, desagradáveis, imbecis e vis.

Ricardo VI estava com treze anos. Seus pais, Ricardo V e Rita, passavam uma temporada na Índia, onde os banhos coletivos eram cada vez mais inacreditavelmente coletivos e a riqueza se projetava e se distribuía - para eles, inacreditavelmente, porque, no Brasil, ainda era grande a quantidade de casebres miseráveis. Ricardo VI ficara com os avós, no Rio. Ricardo IV estava muito moço, ainda: 66 anos. Sérgia era tida, pelos amigos do neto, como um tesão - aos 62. Das gêmeas suas tias, Ricardina e Olga, que estavam com 42, Ricardo VI gostava mais da primeira, que ficara solteira e morava sozinha e alternava namorados, com displicência e alegria.

Naquele sábado de dezembro, Ricardo VI estava na casa da outra tia, sua madrinha, Olga – que havia saído com a pessoa com quem era casada; ele estava só. Lia e assistia ao que podia, nos livros que encontrava, na tri-tv, na Rede. Olhava a imagem das câmeras que filmavam desde o corredor do vigésimo quinto andar onde estava, passando pelos elevadores, o hall, as calçadas, até dois, três quarteirões de distância. Lia e relia em seu micro-palm-top textos que seu pai escrevera nove, dez, onze anos antes, prevendo a revolução de 2017. Pensava: nada mais chama a atenção de ninguém.

Era normal a sucessão de guerras, desgraças, vilezas, grosserias explícitas e outras disfarçadas. Movimentos, protestos, marchas, armas de todo tipo, tudo eram somente imagens coloridas, tridimensionais, ultra-sonoras e com seu cheiro artificial presente, bastava acionar a micro-tecla smellittm.

O que fazer para chamar a atenção dos outros, ainda mais a ponto de provocar uma revolução? – perguntava-se. Não estou aqui para fazer a apologia do suicídio, nem do espetacular nem de qualquer outro – Ricardo VI continuou pensando, com seus treze anos. Um texto espetacular dura dois ou três dias, os que duram mais tempo ou é porque já duram há MUITO tempo ou é porque ativam a hiperimbecílica, sub-glândula da hipófise, descoberta em 2012 pelos sócios Handerson Suamhy & Silva Soares, endocrinologista hindu-americano e publicitário brasileiro, respectivamente. Matar alguém é banal, também, há muito tempo. Como provocar a revolução que meu pai sonhou há tanto tempo?

Noites de sábado são terríveis quando se tem treze anos e se está só, na casa de uma tia, ausente e lá não muito querida. Sentiu saudades do pai e da mãe, mas não teve coragem de conectar-se na imediato-sensorial-rede e falar com eles. Conectou-se, então, com a tia Ricardina.

- Tia, quero fazer uma revolução.

- Para quê, filho do seu pai e neto da sua avó?

- Quero realizar o sonho do meu pai. Gosto dele, do sonho dele, até mais do que de meu próprio e querido pai. Gosto da idéia da política amadora. Até as novelas chegaram ao fim – é verdade que o que entrou no lugar delas seja muito pior ainda -, mas acho que dá pra fazer alguma coisa que chame a atenção e acorde todo mundo, tia. O que é que eu faço, tia?

- Volte para Minaçu.

- Tia, o que é que eu vou fazer em Mi-na-çu?

- Sua revolução. Ou você pensa que ela vai acontecer no Rio? Nunca! Essa revolução que seu pai quer tem que acontecer de dentro pra fora; do interior para o litoral, a partir daquele lugar absurdo onde vocês moram, até chegar aqui. E não falo do centro de Minaçu, mas daqueles cantões, com cara de fim do mundo, onde mora aquela gente que até hoje prefere se isolar. Essa gente é que desistiu da novela – ou você pensa que fui eu ou sua avó?

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