5.27.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZ –

Prudente de Morais – o Biriba - afastara-se do governo por motivos de saúde. Era novembro de 1896. Enquanto Ricardo Coração dos Outros avançava com Olga de São Paulo a Minas (depois, Goiás), recuava a terceira expedição contra Antônio Conselheiro. De Campinas, nos trilhos da Companhia Mogyana de Estradas de Ferro e Navegação, Ricardo e Olga adentravam o país. Ao jeito do seu tempo, fincavam suas bandeiras. Permaneceram em São Paulo mais tempo que planejaram, não se sabe se por medo da turbulência em tantos cantos do país, se por descuido ou deslumbramento. Ao que consta, viveram por lá, em boa parte, das modinhas de Ricardo. Naquele período, cartas de Armando eram remetidas a um falso endereço e desconexamente respondidas por Olga, a qual, por sua vez, do endereço verdadeiro, trocava notícias com o pai (ainda vivo, ainda cúmplice).

Por falta de qualquer planejamento, Ricardo V e Rita iam permanecendo em Minaçu. Receberam a visita dos pais dele, Ricardo IV e Sérgia, quando Ricardo VI estava com dois anos. As gêmeas, irmãs mais velhas de Ricardo V, Ricardina e Olga, não foram. Depois de comentários ora pedantes ora infelizes de Sérgia sobre a cidade; de embriagado desabafo de Ricardo IV (que trouxera de presente seis garrafas de uisque doze anos, tendo sido a primeira liquidada por ele, Sérgia e Rita naquela noite – Ricardo V pouco ou nada bebe), queixando-se da dificuldade em convencer clientes seus europeus a investir mais no Brasil e a si mesmo de que existiria um caminho para a prosperidade da maioria via capitalismo; do contraponto de Sérgia – “O socialismo é a farsa com outra roupagem”; dos desapontamentos de Rita com sua estada com os avá-canoeiros – “Não consiga acrescentar nada ao meu tese”; de complementos treslouqüentes de Ricardo IV – “O mundo já foi governado por Hitler, Stalin e Mussolini, ao mesmo tempo!”; de Rita provocar o marido, sem resposta - “Ricardo sonha com discos voadores americanos invadindo Brasil”; de Ricardo VI finalmente pegar no sono e de todos se retirarem para dormir, Ricardo V foi até a rua deserta, olhou o céu, teve um sobressalto, voltou às pressas para casa e escreveu um título, em seu computador portátil: “A Revolução Brasileira de 2017 pela influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da sua plebe e a involuntária conspiração de Newton e Gauss”. (Era ainda 2005.)

Na manhã seguinte, confessou a Rita:

- Dormi deprimido. Rita respondeu-lhe:

- Estou de ressaca.

Movimentos sociais ocupavam terras produtivas e improdutivas, usinas hidrelétricas, estradas. Seu discurso era por uma reforma agrária, por respeito ao meio ambiente, pelo modelo de sociedade do Estado, para o Estado, pelo Estado. Revistas de grande circulação os acusavam de má fé e retratavam um governo Lula aos tropeços de uma conciliação entre investidores e movimentos, encurralado nos cantos do fisiologismo e acuado pelos escândalos das propinas. Descrença. Alguns jornais (de extrema-esquerda?) insinuavam sintonias entre setores militares e descontentes defensores do Estado, para o Estado, pelo Estado, cujo ícone de então era Hugo Chavez, presidente da Venezuela (que era ridicularizado pelas revistas de grande circulação).

Quando seu pai acordou, Ricardo V comentou, talvez, infantilmente:

- Papai, a América Latina continua a mesma dos tempos do Bolívar. Lembra da biografia dele, escrita pelo Moacir Werneck de Castro? “O melhor a fazer em relação à América é se afastar dela”. Lembra dos sonhos dele, Bolívar, de fundar a Grã-Colômbia?

Ricardo IV respondeu:

- Filho, estou de ressaca.

Ricardo V retirou-se, foi a folhear desordenadamente outra biografia, a de Policarpo Quaresma, na qual seus trisavós são tantas vezes citados. Descrença. Depois de tanto idealismo. Passou no corredor pela mãe (“Filho, estou de ressaca”), foi até o quarto do filho, que ainda dormia, sentou-se na cama dele e deu-lhe apaixonados beijos no rosto. O garoto afastou o pai com os braços; Ricardo voltou à sala, onde encontrou a família ainda sorvendo fumegantes cafés, cada qual olhando para pontos improváveis no espaço dentro da sala, o ar, refrigerado. Perguntou a eles:

- O uisque do meu pai é ruim? Sérgia foi quem respondeu:

- Naquela quantidade...

Ricardo IV levantou-se, aproximou-se do filho, deu-lhe um beijo desajeitado na bochecha e propôs:

- Vamos pescar? Não há um barco que possamos alugar? O que mais há para fazer aqui?

“A Revolução. Que não será nem de direita nem de esquerda, nem popular nem elitista. Nem mesmo anarquista e, para que não seja perigosamente anárquica, faremos a revolução amadora: a da política por amadores.” – Foi o que Ricardo V pensou mas não disse, naquele momento, quando Ricardo VI chegou à sala e disse:

- Mãe, tô com fome.

- E a vovó, de ressaca - Sérgia emendou.

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