5.13.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO OITO –

Hoje, em 2020, o Português é tão compreendido quanto o Inglês e o Chinês não porque tenha havido a equiparação econômica dos países que falam essas línguas, ou a dos principais países cujas línguas de origem sejam essas – todo mundo sabe disso. A micro-eletrônica é que superou a micro-inteligência – e hoje temos a pastilha multilingüe que implantamos em nós mesmos e em nossos bebês e estes se fazem poliglotas desde suas primeiras palavras - desde que as línguas dos diferentes países não sejam desprezadas por seus líderes ou diplomatas, claro: como seria traduzir línguas desconhecidas por opção? Como estabelecer uma linguagem comum se as originais fossem desprezadas – por opção? Pois já houve tempo em que a opção era desprezar a língua dos outros, como já houve tempo em que a opção era desprezar a língua própria.

Nem sempre a maioria se dá conta de que em Cavalcante e Minaçu, hoje em dia, também seja possível expressar-se e ser compreendido em, praticamente, qualquer idioma, porque a maioria sequer ouviu falar dessas cidades. Hoje, a pastilha multilingüe já incorpora a LUZ – Língua Universal da raZão – que não existia no tempo em que Rita desenvolvia sua pesquisa dos avá-canoeiros. Falar disso há quinze anos era fazer questão de ser chamado de tolo – para dizer o mínimo.

Em 2005, Ricardo Coração dos Outros VI estava com dois anos. Seus pais permaneciam em Minaçu, apesar dos protestos de seus avós, Sérgia e Ricardo IV e a viúva Sarah Shaw Almanendez Chermont, mãe de sua mãe, Rita - que levou seis meses e meio para conseguir uma autorização de visita aos avá-canoeiros, em parte por zelo da FUNAI, em parte por causa do sotaque (não existiam as pastilhas multilingües em nenhum lugar do mundo; e houvera um turista suspeito, recentemente, por lá – até por ser estrangeiro e turista “por lá”).

Índices que mediam o desenvolvimento humano colocavam Minaçu um pouco acima e Cavalcante um pouco abaixo da divisória entre o bem estar comum e o mal estar generalizado. Quando se media o quanto o país produzia em relação ao resto do mundo, o Brasil ficava entre os quinze primeiros de um total de cento e vinte; quando a medida era do quanto do produto da produção ficava com quantos de um mesmo país, o Brasil ficava entre os três dos mesmos cento e vinte, só que em escala inversa – com enorme quantidade de pobres e miseráveis: o país era um dos campeões da produção e simultaneamente da “burra maldade” – expressão cunhada por Ricardo V, que acabou por desenvolver sua tese “A influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da plebe brasileira” com nítidos vieses da que gostaria de ter escrito (“A sociedade brasileira e a perversa e involuntária conspiração de Newton e Gauss”). Ricardo V, aliás, livrou-se da dependência dos pais quando Rita propôs à instituição que patrocinava sua pesquisa aos avá-canoeiros que também patrocinasse a tese dele; mas com a exigência de que ele e ela se mantivessem na desconhecida Minaçu. O prazo para conclusão das pesquisas foi se renovando à medida em que seus respectivos conteúdos foram se tornando cada vez mais distantes dos objetivos contratados – porque muito mais interessantes.

Já quando Ricardo Coração dos Outros e Olga hospedaram-se como falsos marido e mulher no Hotel Bandeirantes do Arouche, tiveram muita timidez e recato um do outro, até que um calor insuportável fez com que ela, já no quarto, arrancasse de si cada pedaço de sua complexa e empoeirada e suada vestimenta, deixando à mostra peitos colossais e pontiagudos e pelos pubianos mais colossais ainda, a ponto de deixar Ricardo proporcionalmente pontiagudo, peninsular ao seu Coração dos Outros, também a arrancar seu terno amarfanhado de seu corpo mal lavado na casa de cômodos onde se hospedara até que ela chegasse a São Paulo. Não foi ali que iniciaram sua dinastia; mas o que ficou registrado daquele desequilíbrio climático e sua simbiótica apoteose bioquímica, numa empolgada caligrafia (em quartetos musicalmente pautados) de Coração dos Outros, por muitos anos, em acervo de família paulistana das mais tradicionais, hoje é acessado por quem quer que seja no idioma que for, tanto na 1012 como na TPM©:

Dos mapas não sabemos,
Como chegar às Minas,
Menos,
E já nos conhecemos

Intimamente.
Calorosamente,
Pubicamente.
Publicamente,

Que ninguém nos ouça
Essa modinha moça
Que te faço
Perdidamente.

Apaixonadamente
Teu,
O teu,
Dos Outros.

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