5.21.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO NOVE –

Ainda que tardio, telegrama da sede da FUNAI, em Brasília, endereçado ao responsável do posto de Minaçu, finalmente permitiu que Rita partisse para a terra dos avá-canoeiros, já gestando em seu ventre Ricardo Coração dos Outros VI, ao mesmo tempo em que deixava em casa – compraram uma, de madeira, com ar condicionado e bem conservada, numa vila formada anos antes pela estatal que iniciara e era sócia da primeira hidrelétrica -, o pai dele e já marido dela, Ricardo V, mergulhado menos em livros que em confusos pensamentos.

Haviam discutido com alguma agressividade sobre sociedades formadoras de sociedades. Ali, na região, quantas sociedades formavam aquela? Em Cavalcante, município com dimensões de estado e população 15 vezes menor que a da favela da Rocinha (no Rio – então com 150 mil habitantes), no centro, uma fila indicava uma das maiores fontes de renda da cidade: a do Instituto da Previdência oficial; nas proximidades, outro significativo centro de renda: a prefeitura. Carrões de donos de terra ou herdeiros de extintas minas de ouro circulavam em meio à população majoritariamente negra. Juizes, promotores, comerciantes e comerciários; trabalhadores e trabalhadores rurais completavam, muito a grosso modo, aquela sociedade, que contava ainda com mercado e pousadas, uma delas de duas mineiras, “cozinheiras de mão cheia, com um estoque de cachaças de fazer inveja a qualquer destilaria da Escócia” – como Ricardo V escreveu, brincando, ao pai, por “e-mail”. Na região rural, os Kalungas, quilombolas, periodicamente redescobertos por culpas herdadas de violências herdadas de gerações passadas; nômades habitando casebres de adobe, como outros, nativos, descendentes de sobreviventes indígenas - distantes vizinhos, separados por fazendas e estradas rurais. Paisagem exuberante. Próxima, Alto Paraíso, cidade da região mais associada à Chapada dos Veadeiros, naquele tempo, em permanente e vigilante culto a discos voadores, que diziam ser freqüentes por lá. Minaçu, com uma população de cerca de três vezes a de Cavalcante, sem o apelo de cidade histórica, também concentrava uma enorme quantidade de empregos em sua prefeitura, e possuía uma elite de pensamento formada por um padre (teólogo e filósofo, com passagens em Roma, Rio, São Paulo e Goiânia), muitos pastores, juíza, juiz, tenente, promotor, políticos e representantes das empresas ali constituídas: as duas hidrelétricas, a mineradora de amianto, o comércio. Engenheiros, sociólogos, assistentes sociais – todos e todas de sólida formação e experiência, alguns itinerantes, outros, residentes. Reassentados pelas hidrelétricas; vaqueiros, fazendeiros, adolescentes de brava, consistente e inquietante formação e postura; pistoleiros; agiotas. E em toda a região, como em qualquer lugar do mundo, prostitutas. E em toda a região, como em muitas outras do Brasil de então, diferentes formas de pobreza, de pobreza extrema, de miséria.

Um pouco mais distante, Abadiânia, pólo turístico de americanos interessados em “Intuitive Astrology” e “Healing Journeys to Brazil” (para quem não está usando a pastilha multilingüe, “to heal” quer dizer “curar”).

- Esses grupos são é projetos de ocupação territorial endêmica por seus conterrâneos – Ricardo V insinuava, provocando Rita.

- Querem ocupar o Brasil de dentro pra fora, das vísceras para a derme e a epiderme! – insistia.

- Como se explica, por exemplo, o falso e sumido turista flagrado por uma jornalista? Ora, quem, do “primeiro mundo”, estaria, de verdade, interessado em se meter nesses cantos, senão para ocupá-los? Para, quem sabe, montar uma Disney de montanhas russas na Chapada? – debochava, talvez, complexado, ou, quem sabe, só para ferir a mulher amada, fosse por saudades inconfessáveis de Maria Otávia ou porque amava seu país a ponto de não o conseguir explicar e exigir dela possíveis culposas explicações.

Rita partiu em silêncio, deixando-o só, com seus remorsos.

Quanto aos trisavós dele, Ricardo Coração dos Outros e Olga, acabaram por realizar seu devaneio inicial, de reviver as entradas e bandeiras dos tempos coloniais. Não foram pelo mar para, depois, retornar à terra; ainda que simbolicamente, arrancaram mato do chão foi refazendo roteiros daqueles tempos: do sudeste ao centro-oeste, mas sem matar um único índio. Só choraram duas mortes, no percurso: a de Armando, mais pelos sonhos que ela não viveu que pela realidade que compartilhou com ele; e a do pai dela - esta, sim, muito chorada. Ambas chegaram ao conhecimento deles por telegramas, semelhantes ao da licença para que Rita, mais de cem anos depois, pudesse conhecer de perto os avá-canoeiros.

Já da morte de Policarpo Quaresma, ninguém desta morte jamais soube. Talvez ele viva em Abadiânia – de novo idealista; eterno; e terreno.

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