5.06.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO SETE –

Faltou bom senso. Como é que Ricardo e Olga imaginaram ir para Minas ou o que dela se estendesse, pois mal sabiam da existência de Goiás (e pelo mar!), depois de Olga, com suas ditas meias verdades, dizer ao pai e ao marido que iría para São Paulo? O que fazer? O inevitável: Ricardo tomou o trem para lá. Na semana seguinte, foi a vez de Olga, que, acompanhada de um ausente Armando, compareceu à Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil para fazer o mesmo percurso. Ricardo despediu-se em definitivo de seus vizinhos e senhorio; Olga, supostamente, temporariamente, do pai – com sinceros remorsos - e do marido – com falsíssimos remorsos.

Antes de encontrar um hotel descente para quando ela chegasse, Ricardo morou como estava habituado: alugou um cômodo em uma casa no centro, com janela para a rua, e teve mais sorte ainda – pois a casa era uma raridade no local e à época: nela, todos os dias, ele podia se lavar e, uma ou duas vezes naquela semana, até banho tomou. Juntou-se a estudantes, boêmios do jeito como ele se encontrava, ali, com seu violão e apaixonado coração, que – às vezes, chegava a acreditar – era dos outros na mesma medida que seu.

Já em 2002, Ricardo V e Rita finalmente desembarcaram em Minaçu. Era um dia de sol de rachar, como costuma ser por lá. Hospedaram-se em um hotel no centro, asseado, com apartamentos de quarto e banheiro conjugados, piso de cerâmica e chuveiro elétrico. (Fosse 1980 e não encontrariam propriamente um hotel; procurassem uma casa, teriam sorte se encontrassem uma com banheiro interno.) Saíram pelas ruas. Apesar do sol, tiveram a sensação de estar em um local escuro e, após o almoço, um grande mal estar, não da comida, mas porque era o período seco. Ficaram tontos, cansados, de nada estranharam ver homens largados em bancos, mulheres com sombrinhas. Uma cidade parada – era esta a sensação, ainda que passassem por lojas, mercados, óticas. Cerca de 33 mil habitantes, Ricardo lembrava do número que vira na Internet, a rede de então. Algumas árvores; ruas com nomes de estados (Maranhão, Bahia...); casas de alvenaria e de madeira; casebres pobres, na periferia; de vez em quando, bicicletas, mulheres pilotando pequenas motos, poucos automóveis, um caminhão. Um bar com homens em volta de mesas na calçada, muitos sem nada beber ou comer. Depois saberiam: ali, realizavam-se diversas transações: gado, agiotagem, vendetas. Uma praia na beira do reservatório da segunda hidrelétrica que havia sido recentemente inaugurada, no rio Tocantins. Um trapiche, onde pobres pescavam com linhas, amarradas em esferográficas baratas. No fim da tarde, visitaram uma feira livre. Ficaram bem impressionados com os vegetais, seus preços baixos, e chocaram-se com a exposição de carne bovina rodeada de moscas.

Na manhã seguinte, Rita não conseguiu contato com o encarregado da FUNAI – Fundação Nacional do Índio – para agendar a visita aos avá-canoeiros. No refeitório do hotel, interessaram-se pela conversa de um sociólogo sulista com uma sua colega e uma assistente social da região que foram tomar café com ele. Falavam de uma comunidade onde desenvolviam um programa de geração de renda, por conta da recente hidrelétrica. Rita e Ricardo apresentaram-se, disseram do propósito de cada um, naquela visita a Minaçu. Perguntaram se podiam acompanhá-los à tal comunidade. Não fazia muito, uma jornalista dissera àquela equipe de um falso turista estrangeiro, cujo objetivo real ela não conseguira descobrir. Apesar disso, os três acharam que, por parte daquele casal, havia sinceridade e concordaram. Rita e Ricardo V conseguiram alugar uma camionete e seguiram a da equipe, em viagem de hora e meia, boa parte em estrada de terra. Lá, um morador de uns sessenta anos indagou a um despreparado Ricardo:

- É verdade que no computador tem uma tal de intramete, e que por ela a gente consegue falar até com o Japão?

De novo no hotel, confusos com tantos contrastes, tantos cafuzos, mesmo para um nativo do Rio, com suas favelas e Ipanema, descendente de um mulato do século XIX; mesmo para uma americana da Flórida, descendente de franceses por parte de pai e espanhóis por parte de mãe, aportados havia tempo na Louisiana, Minaçu já não lhes parecia feia nem parada. Ricardo tomou banho, voltou ao quarto e, enquanto esperava pelo banho de Rita, dedilhou seu violão. Depois, namoraram e geraram Ricardo Coração dos Outros VI.

Um comentário:

Mario Benevides disse...

Tenho recebido mensagens dizendo da dificuldade em postar comentários. Basta clicar em "Post a Comment". Vou-me identificar abaixo, para ver se dá certo mesmo, vamos lá: