2.11.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- TRÊS: POR PARTE DA MÃE –

(3) Outras Dinastias: a do pai de Rita

Se Satchmo já tivesse idade, teria sido em outro estabelecimento que não o de Henry Ponce que teria iniciado sua carreira na música profissional.

Poucos anos antes de Lima Barreto escrever a biografia de Policarpo e seu professor de violão, Ricardo Coração dos Outros, quando Louis Armstrong (Satchmo) jogava tijolos em um dos namorados da mãe a quem presenciara batendo nela, jurando-o de morte pelo resto da sua vida iluminada, com direito a detenção na “Colored” Waif’s Home for Boys - não pelos tijolos, mas por uns tiros para o alto com o 38 que encontrara em casa de um outro namorado de Mayann, como ela era chamada -, Chermont la Belle cuidava de sua honky-tonk com mais zelo que qualquer creollo macho da Nova Orleans daqueles anos de estréia do Século XX.

Não se pode acusar la Belle de vida indigna; dava emprego a músicos e moças que precisavam de um lugar para proporcionar diversão a homens solitários e enfrentava concorrentes invejosos no braço, sempre que preciso. Entretanto, haverá quem considere ainda mais digna a vida de André Chermont, que por lá chegou quando da retomada do território da Louisiana pela Corte Francesa, em 1731. Não se sabe bem o que foi que ele fez, mas é tido como herói pela família por ter sido capaz de resistir aos índios natchez e aos ingleses - aos quais foi cedida Nova Orleans após a Guerra dos Sete Anos, quando Espanha e França foram aliadas, e à segunda foi reconhecida pela primeira a posse de tudo ali à leste do Mississipi que Nova Orleans não fosse.

De André a la Belle, muito originalmente Louise de batismo, houve um rico na família, que prosperou do algodão e se tornou um nobre: André Joseph Levitt Chermont II – título que ignorou dois ou três Chermonts entre o pioneiro e ele, em um período de cerca de cem anos. Aí por volta de quando Ricardo Coração dos Outros fugiu do Rio de Janeiro com sua Olga, quando Nova Orleans já era Estado Americano, Chermont II faleceu, deixando em vida, além de umas filhas que desapareceram Mississipi acima com ou sem maridos, um tuberculoso André Joseph Levitt Chermont III com cinqüenta e cinco anos, sobrevivente da Guerra da Secessão, cuja mulher, Jean Marie Stweart, passava dias e noites trancada em seu quarto, imitando sons que ouvia de uns poucos negros que ainda roçavam por uns poucos cobres lá fora, no que restara da um dia fazenda, a essa altura, já um tanto arruinada de pragas, melancolia e abandono. Dos quatro filhos que tivera, três foram homens; os três morreram antes dos dez anos. Dois anos depois, pai e mãe infortunados pela guerra e a morte prematura de três dos quatro filhos morreram dentro da casa decadente do que fora espécie de palácio rural de Chermont dito II, não se sabe se voluntariamente ou não; o fato é que um dos negros que acabaram ficando por lá, de posse informal da terra ou do que dela restara foi à cidade cantar para Louise la Belle, que já estava com seus trinta e cinco anos e iniciava sua carreira de proprietária de uma honky-tonk – nunca teve nada de bela, o apelido era do mais cruel sarcasmo -, a canção que permaneceria na família do pai de Rita para sempre:

A woman-bird sings and sings
A woman-bird sings and sings
Index, middle, little finger
Index, middle, little finger

Fine three fingers, sweet three rings
Fine three fingers, sweet three rings

Who’d stolen woman’s rings?
Who’d stolen woman’s rings?

No more fingers, now’s your turn
No more fingers, now’s your turn

Now’s your turn you brave thumb
Now’s your turn you brave thumb.

La Belle quis passar a se chamar Chermont the Thumb, mas já não era mais possível mudar de alcunha, o que poderia, aliás, prejudicar seus negócios. Mas, que negócios? - ela se perguntou. La Belle vendeu sua honky-tonk, ingressou no Charity Hospital, foi aprendendo novo ofício. Dez anos depois, lá conheceu um convalescente muito mais moço que ela, tão ou mais carente que ela. Casaram-se. Foi mãe adotiva de Charles Chermont Stevens, aos quarenta e sete anos, abandonado a presumíveis quatro meses de seu nascimento na porta do Charity. La Belle – melhor dizendo, Louise Chermont Stevens – foi a trisavó de Rita. O Stevens desapareceu com o tempo; Charles era negro.

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