9.02.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E QUATRO -

Rita assistia atônita ao que a televisão mostrava: a cidade onde quase nascera, praticamente destruída por um furacão. Rita desesperava-se e chorava tanto quantos vários de seus compatriotas naqueles momentos, mas, embora estivesse em uma cidade do interior do Brasil, com poucos recursos e baixos índices de desenvolvimento e qualidade de vida, conseguira o que tantos dos de seu país natal não conseguiam: falar com sua família; com sua mãe - por telefone, de Minaçu a Orlando, tudo começando por uma espiral ridícula pendurada na parede, tantas vidas e coisas terminando em outra espiral, monstrenga, imensa espiral feita de ar.

Ricardo V acompanhava a tragédia de Nova Orleans perguntando-se, secretamente: será que sofro mais quando a dor é de país rico? Todos os dias na TV assisto a Tsunamis, Palestinas, Áfricas, Índias, Paquistães, Nordestes... Percebo mais essa dor que vejo agora. Esforçou-se para abstrair-se do fato de ser casado com uma americana, somente para observar, introspectiva e obsessivamente, tão à sua maneira quanto à de Otávia, de quem viveria, como hoje, em 2020, para sempre viúvo, se esta é que era a sua verdade: dor de rico lhe doía mais. De repente uma idéia lhe caiu no colo, nas fuças, no ventre, na nuca: a cultura norte-americana, de tão difundida, independentemente da proximidade, das características de novo-mundo e país-continente em comum com o Brasil, por mais amigos ou conhecidos judeus, nordestinos, negros, hindus e árabes que tivesse, a dor americana, do jazz de Nova Orleans inundado, saxofones, prostitutas, ricos filhos-da-puta ou não, louras, barbies, negros e negras atuando em filmes por pressão e força e talento, todos na súbita desgraça, era como se Nova Orleans, a New Orleans do French Quarter fosse sua. Como sua era o Rio de Janeiro. Como, já àquela altura, era Minaçu. Tudo tão diferente e distante, no entanto, era seu e por isso doía. Não que não doesse o pavor diário palestino, a desgraceira dos homens-bomba, toda a merdice e desgraceira humana; tudo doía, mas era diário – e voltou a perguntar-se: devo mesmo sofrer mais porque agora, como em setembro de 2001, foi nos Estados Unidos, os grandes fodões, os destruidores, predadores, arrogantes imperadores? Choro a dor dos opressores? Claro que não: choro a dor de quem se fodeu, de quem dormiu numa cama e acordou numa imensa poça d’água, na lama, na bosta, no frio, na tristeza, no abandono, na pior espécie de solidão.

E lhe foi assustador que, exatamente naquela noite, quando o noticiário da tragédia do furacão “Katrina” explodia na tela da sua televisão e golpeava tão perto de si tão fundo sua mulher e também a ele, que outra forma de solidão lhe viesse às mãos pelas do filho de 3 anos – uma carta amarelecida e aos pedaços do bisavô, Ricardo Coração dos Outros II, onde ele diz:

“Maria Cristina:

Alguma coisa muito má eu devo ter feito. É assim que me sinto. Foi dedicação demais e, em troca, desdém demais. Nada faz sentido. Sou um homem barbado na frente do espelho, suposto estudante de Direito, ex-noivo, ex-sujeito.

Vou rimar sempre: sou filho de trovador. Pouco me importam esses modernistas de São Paulo, ainda que a eles muito admire, por sua coragem, de desconstruir para melhor reconstruir esta nossa raça.

Fugi do assunto: continuo como quem foi flagrado em crime que não cometeu. Não posso ser chamado de mau amante, sequer: gemias, e gemias com prazer, não me venhas dizer que não, que fingias – porque não fingias. Quem nasceu onde eu nasci conhece de tão perto a verdade, que é capaz como nenhum outro de conhecer a mentira e o fingimento. Não fingiste: gostaste. Gostaste de mim, da minha presença, do meu cheiro, meu contato e tudo o mais que resolvemos juntos arriscar e subverter.

Vai com teu almofadinha; vai e explica a ele tua vergonha. Mostra a ele meus dentes cravados nos bicos dos teus seios, meus dedos, em todos os pedaços do teu corpo.

Não te mando esta carta, porque sou covarde. Porque me sinto como se tivesse partido de mim mesmo, como se ousara rasgar o mundo em três, na frente de seus donos. Como quando quebrei o objeto mais precioso de minha mãe. Como quando, brincando com meu pai, sem querer, quebrei-lhe o braço, quase que para sempre lhe arrancando das mãos o abençoado violão e seu dedilhar encantado.

Não vou morrer; vivo no Século XX. E ainda vou te fotografar sorrindo, porque é sorrindo que te quero mais, ainda que em braços que não são meus – mas a máquina há de ser tão moderna, que há de fotografar por trás dela meu sorriso, maior e mais intenso que o teu.

Não te quero mais, Maria Cristina; já não cometi crime algum; gosto mais de mim e das futuras namoradas e noivas e amantes que amarei, na mesma cama de “república” que te possuí. Saudades de ti. Isso não há como eu negar. Mas, amanhã, farei a revolução e seduzirei a bela criatura que me lava as roupas, que será de mim amada como foste tu.

Talvez eu te mande esta carta. Amanhã saberei.”

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