9.16.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E SEIS -

Contou-nos um PCR que um trisavô seu, jornalista (como se chamou a profissão de Profissional de Comunicação e Reportagens durante muitos anos), passou de geração a geração um desabafo que ouviu de Ricardo Coração dos Outros II na Bolívia, onde a Coluna Prestes, à qual se engajara, encerrara sua invicta (ainda que não propriamente vitoriosa) caminhada de 25 mil quilômetros:

- Fui idiota de largar a roça, onde o aperto de mão tem na pureza e na sinceridade o mesmo peso e a mesma pega da rugosidade dos calos feitos na lida permanente com a terra sedenta ou encharcada, para me enfeitiçar pela capital, onde o aperto de mão tem a leveza da imunda falsidade e da débil futilidade; mas recuperei-me e vinguei meu pai: se ele entrou na guerra do lado dos opressores, tive a honra de seguir o Cavaleiro da Esperança e o general Miguel Costa contra Artur Bernardes e sua Lei Infame e a opressão da roça e da cidade. Mas fui mais idiota ainda e mais enfeitiçado ainda pela futilidade personificada chamada Maria Cristina. E ainda sou. Sim senhor, aquela senhorinha de nariz que não pode tomar chuva sob o risco de matá-la afogada em sua própria imbecilmente suposta superioridade sobre todas as coisas e os mortais, principalmente os plebeus e mestiços, como eu, me enfeitiçou, e parece que para sempre. Que idiota eu sou!

E se, muitos anos depois, Ricardo V se sentia um idiota por se perceber seguido por quatro idiotas, dois mandados dos Estados Unidos e dois pelo Tenente, anos depois ainda Ricardo IV, seu pai, diria de si a mesma coisa ao neto, Ricardo VI:

- Sou um idiota a misturar idealismo com negócios, coisas que não se misturam, e desandei a misturar uisque com hepta-endorfina, para ver se era possível o impossível, misturar o que não se mistura, como água e óleo, como costumava dizer meu avô. Às favas com os negócios ou com o idealismo, porra! Desculpe, meu neto, desculpe.

O mesmo Ricardo VI, ainda menino, uma noite, ouviu a avó, Sérgia, medindo-se com a mãe dele, Rita, no mesmo quesito, na sala de visitas da avó, no Rio de Janeiro, já havia muito não mais capital federal como no tempo de seu trisavô, Ricardo II:

- Idiota sou eu. Ora, você deixou seu país movida por um ideal, uma pesquisa científica.

- Que não deu em nada.

- Não por culpa sua.

- Sim, por culpa meu, culpa minha, porque fiquei comovida com a história dos avá-canoeiros sem possibilidade de cruzamento, quer dizer, casamento, procriamento, quer dizer, procriaçau, e pesquisadora não pode ficar comovida, tem que pesquisar e estudar e entender e escrever, e eu não escrevi, não escrevi nada.

- Mas seu marido escreve e você o ajuda, não é?

- Mas me anulei, sou mãe e pronto. Rita ficou em silêncio, refletindo um pouco, e disse, depois:

- Mas eu gosto de ser mãe e mulher, mulher de seu filho. Me faz bem.

- Mesmo morando numa cidade como Minaçu, sem recursos, provinciana?

- Cidades americanas são quase sempre provincianas, não faz mal. A não ser as grandes, que eu não gosto. Recursos, quer dizer, cultura, hospital, remédio, a gente arruma viajando e a gente pode viajar sempre, a toda hora, não é problema.

Depois de outra pausa, Rita voltou ao assunto, como quem havia provado alguma coisa à sogra:

- Viu como a idiota sou eu? Sérgia inspirou profundamente e respondeu:

- Minha filha, ninguém é mais idiota que eu, me escondendo atrás de um disfarce babaca e cretino de culta e educada e refinada e politizada. Sabe do que eu gosto, mesmo? Eu gosto é de...

- Não precisa dizer. Eu também gosto. Todo mundo gosta.

E aí riram um pouco das suas idiotices.

Já Dona Luzia, reassentada por uma das hidrelétricas que superou a praga da cultura da dependência e da subsistência e plantou e planta de tudo e se alimenta e se veste e pagou os estudos dos netos do que produziu e produz, e que hoje caminha em torno da plantação dando instruções e depois senta-se em uma velha cadeira de balanço e repete que quem crama da vida é porque não trabaia e desanda a contar como foi sua participação na Revolução de 2017, de vez em quando lembra do que ouvia de vizinhos, o que eles assistiam numa televisão não sabia de quem, isso no tempo em que a tv mostrava o presidente fazendo um discurso por dia, um dia para operários, outro para camponeses, outro ainda para fazendeiros, às vezes para assembléias de nações ou artistas de Hollywood ou da tv, até para estudantes e também para empresários ou então bispos ou domésticas ou donas de casa, ou quando as notícias eram pré-fabricadas para satisfazer ditadores ou interesses, e pensava, Deus, quanta idiotice.

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