9.24.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:


UM BRASILQUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADVINHOU
ROMANCE INÉDITO DE MARIO BENEVIDES
BRASIL, 2005
- CAPÍTULO VINTE E SETE –

Mamãe, mamãe! Papai, papai! A Coluna passou por aqui! A Coluna Prestes passou em Cavalcante!

Ricardo VI estava com dez anos (era 2013). Cavalcante, àquela altura, já contava com boa parte da sua população formada por europeus e americanos, que para lá haviam se mudado para abrir pousadas e outras formas de comércio de turismo ecológico. A terra mais valiosa era, agora, a NÃO agricultável - que não tivesse sido preparada para pastagem ou cultivo e que guardasse o que não existia mais em outros lugares: pedra e mata virgem. Ainda assim, era grande ainda a distorção social no município.

No começo do século XXI, quando Ricardo V estava iniciando seus escritos que terminaram por prever a Revolução de Mentalidade de 2017, Cavalcante detinha o segundo índice de desenvolvimento humano do Estado de Goiás – isto é: o segundo pior. Não era muito diferente em 2013. Município de área muito grande, com a maior comunidade quilombola do Brasil – os Kalungas -, e dez mil habitantes, Cavalcante possuía, em 2005, o privilégio de uma proporção de habitantes por quilômetro quadrado muito mais favorável que São Paulo e outras capitais; também por isso, já naquele tempo, começou um fluxo migratório interessante de grandes cidades brasileiras e estrangeiras, aumentando o contraste de traços de cultura, origem e condições sócio-econômicas.

Freudianamente, é comum homens se envolverem com mulheres que, de algum modo, se parecem com suas mães. Maria Otávia, ex-namorada de Ricardo V, cujo apelido era Opinião Pública, morta prematuramente, obcecava-se por uma determinada idéia e a repetia e repetia e repetia. Em 2005, Ricardo V, já casado com a americana Rita e morando na cidade vizinha a Cavalcante, Minaçu, Sérgia estava obcecada em demonstrar que as diferenças sociais do Brasil independiam da situação econômica ou política. Fosse em palestras, chás beneficentes ou almoços, Sérgia insistia:

- De JK a Lula, passando pelos militares, Collor e FHC, com ou sem inflação, com ditadura ou democracia, crescimento ou recessão, estatização ou privatização, de cada cem moedas produzidas no Brasil, dez porcento da população ficam com quarenta das cem moedas. O resto – os outros noventa porcento – ficam com o resto: sessenta moedas são repartidas por noventa, enquanto quarenta, pelos dez mais ricos.

O panorama, como se sabe, só mudaria há três anos, em 2017.

Em 2013, a obsessão do filho de Ricardo V e Rita era a Coluna Prestes – isso porque seu pai dissera a ele que o trisavô de Ricardo VI, Ricardo Coração dos Outros II, participara da longa e emblemática caminhada liderada pelo Cavaleiro da Esperança – como ficaria para sempre conhecido Luís Carlos Prestes.

Pois em 2005, a obsessão de Ricardo V era Cavalcante, para desvendar o passado dos trisavós dele, Ricardo V, que haviam iniciado aquela plebéia dinastia: Olga e Ricardo Coração dos Outros – no que era muito incentivado por Rita, entusiasmada com o clima mais ameno que Minaçu e especialmente pela paisagem. A Chapada dos Veadeiros é das mais deslumbrantes paisagens que podem existir – Rita afirma até hoje, e tenta explicar porque:

- As montanhas de pedra cercam as cidades, as trilhas, os povoados pobres que moram em casas de adobe e sapê, os bichos que correm na frente do carro quando a gente está vindo pra cá, veados, onças, cobras, siriemas...

Quando, no começo deste Século XXI, Rita ainda trazia Ricardo VI no ventre e voltavam pela primeira vez de uma viagem a Cavalcante, a camionete derrapando e pulando na estrada de terra, Rita teve um pequeno sangramento e temeu perder o filho em formação na sua barriga; Rita, que apesar de descendente de espanhóis e franceses, não era católica, nem tinha qualquer outra religião, ali, naquele momento, mirando a chapada, desandou a rezar "Holy Mary" e "Our Father" sem parar.

Era disso que Rita se lembrava quando, em 2013, Ricardo VI, com dez anos, chegou correndo à mesa onde estavam com um casal seu conterrâneo, dono de uma pousada, dizendo Mamãe, mamãe, papai, papai, a Coluna passou por aqui, a Coluna Prestes passou em Cavalcante. Depois, foram até uma das muitas cachoeiras, a pé, molhar os corpos e sacudir os cabelos.

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