4.30.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO SEIS –

Ricardo Coração dos Outros mirava a enseada de Botafogo, numa tarde de sol estupendo. Trazia o violão numa das mãos como se o instrumento fosse um traste e o largava em pé, no chão, para passar um lenço já suado na testa. Esperava por Olga. Martelava-lhe a cabeça seu arroubo de suposta coragem (“Vamos por aí, desfraldar bandeiras, arrancar mato do chão...”) e perguntava-se: “Arrancar mato de que chão? Para onde ir com aquela insana, que quer dar as costas ao marido e ao mundo?”

Foi quando Olga lhe tocou o braço (como ele contou muito depois a seu filho, e este, a uma filha, e assim foi, de geração em geração, até que tudo se pudesse contar agora, em 2020). Ricardo sentiu o coração a lhe dar socos no peito e a ele dirigiu-se em pensamento: “Que pena que não és dos outros de verdade!” .

- Falou com teu pai? Que foi que disseste a ele? – perguntou.

- A verdade – ela disse. E completou: - Uma parte da verdade.

- Uma parte? Como é que se conta só uma parte da verdade?

- Disse a meu pai que preciso ir a São Paulo, só, por uns dias, para não morrer de tédio.

- É para São Paulo que vamos? – perguntou-lhe Ricardo, provocando nela um desapontamento:

- Pensei que tinhas uma sugestão.

- Não tenho a menor idéia! – disparou Coração dos Outros. Aliviou-se quando Olga, docemente, disse assim:

- Nem eu. Resolveremos isso depois.

Ricardo pegou do violão e o dedilhou, com suas longas e asseadas unhas. Um belo dedilhado, ainda que rápido. Nervoso, depositou outra vez o instrumento no chão, usou do lenço outra vez numa tentativa inútil de enxugar o suor das mãos e, enquanto procurava por uma inexistente e indesejada testemunha que os pudesse (e quisesse) ouvir, quis saber, quase sussurrando:

- E teu marido? Já falaste com ele? O que disseste a ele? Também só uma parte da verdade?

- Disse que precisava ir de encontro a familiares de meu pai, que acabaram de chegar a São Paulo.

- Eles existem? Estão mesmo por lá?

- Não, combinei esse enredo com meu pai; meu cúmplice, ainda que só conhecendo parte da verdade. Armando me perguntou, “Teu pai vai contigo?”; eu disse que não, que meu pai anda muito cansado. E isso, infelizmente, é verdade: a saúde de meu pai me preocupa.

- Queres desistir? – perguntou Ricardo.

- Não. Com muito remorso é que vou, mas preciso ir, para longe de Armando e desta vida insossa. Não pretendo ser mais uma a ir morrendo, minguando, magra e infeliz.

Ricardo teve que tomar coragem e inspirar fundo:

- Olga, de que viveremos? Do meu violão? Tenho parcas economias... Podíamos ir para o Sul, para perto...

- Não é momento de ir para o Sul. Quanto ao dinheiro... Meu pai me deu algum.

- Seu pai? E por que não São Paulo?

- Quero ir mais longe.

- Aonde???

- Em busca do ouro! Gostei tanto quando me disseste que iríamos arrancar mato do chão!

- Minas, então? Haverá ouro ainda por lá? Ricardo inspirou o ar da Baía profundamente, o violão a lhe pertencer novamente, e arriscou: - Quem sabe não seria melhor o litoral, Salvador, Recife, ares marinhos a nos benzer diariamente?

- Vamos em busca do ouro pelo litoral! – ela sonhou e falou e redundou, com a voz e os braços e as mãos: - Depois de aportarmos, entraremos terra adentro, cidades adentro, até encontrarmos mato para arrancar do chão. Pode ser em busca do ouro ou da própria terra. Mas que seja da vida. Em busca da vida.

Ricardo tomou do violão e, desta vez, emprestou versos ao seu dedilhado:

Adorável insana,
Apaixonei-me por ti.
Terás saudades
De quem nasceste;
De mim já sei
Por quem foi que nasci.

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