4.02.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005


- CAPÍTULO DOIS –



Quando Olga percebeu que deveriam ir além da amizade, comunicou a Ricardo:

- Teu nome é tão incomum que fundaremos uma dinastia.

- Estás louca, mulher? Sou homem do povo, cidadão comum, plebeu! Veja meu nome: até meu coração é dos outros!

Mas não houve como demovê-la: já o primogênito foi batizado de Ricardo Coração dos Outros II – o qual, ao longo de sua convivência com os pais, foi devidamente orientado – para não dizer doutrinado – para que, se e quando se tornasse pai, o primeiro filho homem se chamasse Ricardo Coração dos Outros III; e assim sucessivamente, através dos tempos. Calhou que, em todas as gerações, até agora, sempre tenha havido um varão, além de várias Ricardinas e Olgas. Por mais ridículo e despropositado que pudessem achar aquela tradição, os descendentes de Olga e Ricardo a têm respeitado rigorosamente, geração após geração, até esses nossos dias de 2020.

Depois se falará sobre o quão difícil foi, para Ricardo e Olga, chegar até a Província de Goiás e iniciar e criar a prole, nos tempos de Floriano Peixoto e, depois, de Prudente de Moraes. Neste momento, faz-se necessário viajar de novo no tempo e sintonizar a mesma estação de rádio que Ricardo Coração dos Outros V ouvia em seu carro, numa tarde de tráfego pesado, na Linha Vermelha, via expressa do Rio de Janeiro, em agosto de 2000 - que transmitia campanha radiofônica de candidato a cargo eletivo da política vigente naquele fim de século, da qual só conseguimos captar uma única frase:

- Política é para profissionais.

Ricardo desligou o rádio. Sua namorada, colega e melhor aluna da turma da faculdade, Maria Otávia, que estava ao seu lado, ficou pensando obsessivamente no que acabara de ouvir: “política é para profissionais”.

Pensar obsessivamente em algo ligado à política era uma característica da personalidade de Maria Otávia, como ela mesma já havia contado a Ricardo V, que se manifestou a primeira vez quando estava apenas com dez anos e passou algumas tardes a repetir em casa e no colégio a palavra “impeachment” - a tal ponto que seus pais a levaram, primeiro, a um neurologista e, depois, a um psiquiatra. Na ausência de um diagnóstico que os satisfizesse, os pais de Maria Otávia tentaram proibi-la de ouvir e assistir a programas sobre política, mas em vão: esta sempre foi sua obsessão.

A de Ricardo – o violão - foi herdada do avô (Ricardo III) e do trisavô – o próprio: Ricardo Coração dos Outros, amigo de Policarpo, e que se casou com Olga assim que chegaram na Província de Goiás – o que depois será narrado em detalhes -, pois lhes foi possível tomar a decisão no exato instante em que souberam do falecimento de Armando, deixando Olga livre e desimpedida para o matrimônio, às claras e na lei, com seu verdadeiro amor.

Voltando ao último ano do século XX e ao automóvel de Ricardo Coração dos Outros V: o exímio violonista reagiu de pronto ao que acabara de ouvir e disse, empolgado e em voz alta, à namorada:

- Política tem que ser coisa de amador! É exatamente por não ser que está tudo errado!

Maria Otávia permaneceu em silêncio – o que causou estranheza ao seu namorado; Ricardo, afinal, conformou-se e aquietou-se, parado no tráfego.

Mas ela, não:

- Esses profissionais vão acabar de acabar com o Rio, vão acabar de acabar com o Rio, vão acabar de acabar... Maria Otávia ficou repetindo aquilo várias vezes, alegrando-o, afinal. Ricardo estava apaixonado por ela, não só pela sua beleza, mas pela forte identificação de idéias que ambos sempre tiveram - tanto assim que foi naquele momento, na Linha Vermelha, que Ricardo e a namorada conceberam o projeto da política por amadores. É injustiça, portanto, atribuir seu sucesso somente a Ricardo V e a seu filho, Ricardo Coração dos Outros VI: ninguém deve esquecer de Maria Otávia.

Já do político que inspirou o casal, só se pode lembrar da frase dele, antítese do projeto ali concebido e que viria a causar profundas transformações no Brasil:

- Política é para pro-fis-sio-nais!

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