4.09.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005

- CAPÍTULO TRÊS –

Maria Otávia, embora despontasse pela originalidade de seus trabalhos, por causa do hábito (jamais diagnosticado a contento) de repetir expressões que se contrapunham às que ouvia na tv, foi apelidada de “opinião pública”, por colegas da faculdade. De repente, passou a ficar em permanente silêncio – até mesmo quando em companhia de Ricardo. A brincadeira, então, passou a ser: “calou-se a opinião pública”. Mais uma vez, seus pais, agora acompanhados de Ricardo Coração dos Outros V, a levaram a um psiquiatra. Maria Otávia foi internada. Um mês depois, o silêncio era ainda mais incômodo, porque acompanhado de uma expressão muito pior que a da tristeza: de resignação. Não sem remorso nem amargura foi escrito, no pano que envolveu o caixão com o corpo de Maria Otávia: “Saudades da Opinião Pública”.

Já era o ano da formatura e Ricardo defendeu sua monografia, que trazia o título “A sociedade brasileira e a perversa e involuntária conspiração de Newton e Gauss”. Seu trabalho trazia o seguinte resumo introdutório:

“Serve a curva de Gauss para representar uma grande parcela das configurações estatísticas humanas. Nela, também se enquadram as preferências políticas da sociedade brasileira. De um lado, minoritário, a extrema direita; no que a ele se opõe, outra minoria: a extrema esquerda. No morro característico da curva, lá está a maioria da população, a qual, sem se dar conta de ser maioria, fica à mercê das suas extremidades minoritárias, ora a tombar-se ridícula para um lado, ora a curvar-se amedrontada para o outro. E é aí que se forma o perverso e involuntário encontro de Newton e Gauss: a cada ação de qualquer das extremas, a outra a ela se contrapõe, em igual intensidade, a fazer, da maioria, massa que se move por inércia, tão somente a acompanhar o movimento, ora para um extremo, ora para o outro, até a estúpida, falsa, inclinada estabilização. O que aqui se propõe é que a sociedade se organize através de abnegados, cedidos pelas organizações que os empregarem ou àquelas que representarem ou às que pertencerem, por elas licenciados e pagos durante o mandato, como simples, impessoais, aplicados e eficazes administradores da coisa pública - sem pseudo-ideologias e, principalmente, sem fisiologismos e sem a demagógica e mórbida e contínua caça a votos e/ou cargos públicos.”

Uma das questões levantadas pela Banca Examinadora foi:

- Sr. Ricardo, e o que seria dos desempregados?

- Um organismo governamental permanente seria criado, para congregar essas pessoas e ajudá-los a retornar ao mercado de trabalho ou aos meios de produção. E, politicamente, estariam necessariamente representados por um ou mais de seus membros.

- O Senhor está propondo o voto indireto? Por instituições? Acabaria o voto direto?

Ricardo foi reprovado, não se sabe se por falta ou excesso de argumentos ou se houve desconfiança de que ele estivesse a defender idéias de Maria Otávia – o que não era de todo inverdade: Ricardo e Maria Otávia compartilhavam de muitas idéias. (Há um trecho da monografia de Ricardo V em que se lê: “insensatez, insensatez, insensatez”).

Ricardo viveu um ano tocando violão e cantando em bares do Rio de Janeiro, enquanto preparava e até que apresentou nova monografia à banca, dessa vez com o título “A influência da simbiose da fidalguia européia, da nobreza africana e da estirpe ameríndia na gênese da plebe brasileira”. Foi aprovado. Em um programa de intercâmbio entre Universidades, conheceu no Rio uma ruiva, chamada Rita, de quem foi-se tornando amigo, até que, um dia, ela lhe perguntou, com sotaque estrangeiro:

- Você conhece Minaçu? Você sabe, meu tese é sobre índios brasileiros; quero conhecer os avá-canoeiros, soube que eles vivem no regiau.

Meses depois, casaram-se. Em Minaçu, norte goiano. Era o começo do século XXI. Já na virada do século XIX para o XX, seus antepassados, Ricardo Coração dos Outros e Olga, haviam optado pelo, praticamente, mesmo destino, por motivos que logo serão explicados.

Na lápide de Maria Otávia, sem que Rita jamais o tenha sabido, está escrito:

Saudades. Saudades. Saudades. Ricardo.

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