4.23.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO CINCO –

Havia vôos “a jato” de uma hora do Rio a Brasília e, de lá, pegava-se um outro, de mesma duração, em um monomotor “Caravan”.

A vida, às vezes, é um cotovelo. Foi o que disse a Ricardo V o funcionário da INFRAERO, estatal de infra-estrutura aeroportuária, no aeroporto de Brasília, quando Rita atendeu seu celular e gritou “This is not true!”.

Ao telefone, sua mãe, lá de Orlando, disse a ela:

- Seu pai morreu. Levantou-se de madrugada dizendo ter sonhado que remava fugindo de dragões e por isso tinha dores insuportáveis no ombro. Os dragões, minha filha, foram mais fortes.

Foi assim que a viagem Rio-Minaçu ganhou inesperada e longa escala, em Orlando.

Isto o aborrecia, mas Ricardo V dependia dos pais. Não houvera nem monografia nem violão capaz de lhe dar um sopro de capital para empreender a viagem até Minaçu, que diria com aquela escala. Mas seu visto – como era exigido, na época - estava em plena validade: por conta de um de seus trabalhos acadêmicos, estivera havia pouco nos Estados Unidos.

Sérgia gostou da idéia e Ricardo IV concordou: Ricardo V acompanhou a namorada a Orlando para os funerais do pai dela, católico, descendente de franceses que, muito tempo antes, haviam desembarcado na Lousiana. Em 1982 mudaram-se de Nova Orleans, porque a empresa onde ele trabalhava abrira um centro de controle de termelétricas em Orlando.

Do funeral e da tristeza alheia não se falará – e sim de uma visita que Ricardo fez, sozinho, a alguns dos parques da Disney e da Universal. Rita garante que foi dali que surgiram várias das aflições que se tornaram teses de Ricardo V e foram à discussão no cenário político brasileiro. Até hoje, em 2020, parece leviandade, bobagem ou coisa pior a mais tênue sugestão de que parques temáticos norte-americanos tenham influenciado a política brasileira. Mas são detalhes assim, a esse ponto constrangedores, que nenhuma projeção macro-sócio-econômica poderia jamais captar.

A psicopedagoga Sérgia Jacobina Neves, casada com o advogado Ricardo Coração dos Outros IV, freqüentemente, entre uma garfada e outra de abacaxi, na sobremesa dos jantares em família, com o olhar sempre embevecido pelas primogênitas e gêmeas Ricardina e Olga, provocava sua família com a seguinte pergunta:

- Por que todos são bem educados no metrô? Por que a mesma pessoa que pega o trem da Central e faz surfe no teto do trem ou quebra o que resta da janela do trem, ao chegar à plataforma do metrô vira bem-educada, civilizada, polida, incapaz de jogar ponta de cigarro no chão – alíás, sequer de acender um cigarro? Ficava orgulhosa quando uma das gêmeas ou seu costumeiramente calado filho Ricardo V respondia:

- Porque é bem tratado.

Nas filas dos estacionamentos e brinquedos dos parques temáticos de Orlando, Ricardo ficou estupefato: bastava que o guia dissesse “ O primeiro deve se deslocar até ocupar o último lugar vago”, que todos – e eram uma multidão! – obedeciam. E de bom grado. E lembrou-se da gravação das estações do metrô do Rio: “Não fume. Não jogue lixo no chão. Não ultrapasse a faixa amarela.” Lembrou-se do “ORDEM E PROGRESSO” da bandeira brasileira e da fama do brasileiro de mal educado, desrespeitador, metido a esperto - o da “Lei do Gerson”: que, como seu pai lhe contou, foi craque de futebol dos anos sessenta (do século XX) que teve a infelicidade (ou felicidade?) de gravar um comercial de televisão, onde dizia “Leve vantagem você também; leve Vila Rica.” Publicitários são muito, muito espertos. Foi aí que Ricardo deu um salto no barco que simulava uma viagem por entre tubarões e a guia chegou a pensar que ele pensasse que os tubarões fossem de verdade. Ricardo falou, em alto e bom som, tendo sido exclusivamente compreendido (não entendido) por outros brasileiros que estavam no barco:

- Se a política se preocupasse com a psicologia mais do que com a sociologia, a população, que é feita de indivíduos, seria muito mais feliz.

E completou:

- Ah, se a política não fosse feita por marqueteiros e políticos de plantão!

Aí sim: foi compreendido, entendido e aplaudido, por todos os presentes.

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