1.20.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario Benevides
Brasil, 2005 / 2006

SEGUNDA PARTE:
UMA BREVE REVISÃO DA CRONOLOGIA GENEALÓGICA DA DINASTIA, PARA DEPOIS SE CONTAR EM DETALHES A REVOLUÇÃO BRASILEIRA DE MENTALIDADE DE 2017

- DOIS: POR PARTE DA AVÓ MATERNA –

A narrativa que Ricardo V fez sobre a árvore genealógica do filho continuou no automóvel, a caminho de Brasília, onde pegariam um vôo para os Estados Unidos, na presença de Rita. Para evitar discussões – ele estava certo de que sua mulher iría discordar de tudo o que ele dissesse a respeito da família dela, e Rita não demonstrou ânimo para falar de seus antepassados naqueles momentos -, Ricardo V optou por contar o que sabia da família de sua mãe, avó de Ricardo VI, Sérgia.

- Sua avó, aos vinte e um anos, resolveu entrar para o PCB, o Partido Comunista Brasileiro. Melhor você continuar gravando o que eu for dizendo e me fazer algumas das perguntas que você quiser daqui a um ou dois anos, se você não se importar. De toda forma, em 1975, ainda era tempo de ditadura, no Brasil. Em 64, João Goulart foi deposto por um movimento militar, esse regime durou até a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney, dois civis, e foi Sarney quem governou, porque Tancredo morreu antes de tomar posse. É complicado, eu sei. Comunismo é um regime onde se pretende que o Estado, isto é, o próprio país, através do governo, providencie tudo para a população – saúde, educação, moradia, emprego, lazer, comércio; nada é de ninguém, tudo é de todo mundo, ninguém é dono de nada. Sua avó entusiasmou-se com essa idéia, mas o que a motivou mesmo a entrar para o Partido Comunista – que era proibido de existir – foi lutar contra a ditadura. Já seu avô se queixa de que, nessa época, ele, por causa também da ditadura, era um alienado, não sabia de nada, apenas ouvia falar. Pessoas desapareciam de repente, um vizinho, um colega de faculdade ou de escola... às vezes, para participar da reação contra a ditadura, inclusive pegando em armas, outras por ter sido preso, muitas vezes torturado, isto é, submetido a sofrimentos terríveis, surras, choques, para dizer nomes de outras pessoas que fizessem parte da reação à ditadura, ou assassinado, desaparecido, exilado para outro país... Seu pai ouvia falar disso tudo, o pai dele, meu avô Ricardo III, teve que se esconder em Petrópolis, já te contei isso, também pesou isso, quer dizer, meu avô, seu bisavô, fez de tudo para que meu pai ficasse de fora daquilo tudo, não se envolvesse, para que não sofresse.

Depois de beber um gole de água mineral com uma das mãos, enquanto mantinha a outra no volante, Ricardo V continuou:

- Minha mãe, vovó Sérgia, ficou fazendo trabalhos de escritório, folhetos explicando o que a ditadura estava fazendo contra as pessoas – eram chamados de “panfletos” -, textos para jornais que estavam proibidos de ser vendidos nas bancas...

- Vovó foi presa?

- Não.

- Torturada?

- Não.

- Deu tudo certo?

- Um dia tudo acabou, depois de muito sofrimento, sua avó sofreu pela morte e pelo sofrimento de alguns amigos e amigos dela, mas ela mesma, conseguiu se safar, fazer o trabalho que se propusera a fazer e pronto. Depois ela desistiu do comunismo, desiludiu-se com a política de maneira geral.

Ricardo V fez uma pausa, por se ter lembrado de Maria Otávia (“a política tem que ser feita por amadores, por amadores, por amadores...”). ficou um pouco triste, depois passou:

- Vovó Sérgia descende de um casal de origem bem humilde, tudo o que ela sabe foi por conta própria que aprendeu, incluindo aquele jeitão educado, polido. Muito estudiosa, estudou de tudo por conta própria, muito precoce, assim como você. Há pouco o que dizer do pai e da mãe dela, eram pessoas muito simples, honestas, trabalhadoras. O grande orgulho dela era de um avô, que era da Polícia, e que vivia dizendo a ela que havia prendido um bandido assim ou assado, isto é, um bandido tal num dia, noutro dia, um outro bandido. Essa expressão, “assim ou assado”, é bem do tempo do avô dela, cuja mulher, mãe da mãe dela, era uma gracinha de velhinha, eu ainda a conheci, Dona Alzira, fazia uns bolos muito gostosos, esse tipo de mulher com cara de avó.

- Vovó Sérgia tem cara de avó?

- Nenhuma. Vovó Sérgia tem cara do que ela é, psicopedagoga, intelectual, cheia de razões, idéias, verdades e ordens. Mandona pra caramba.

- Mamãe não é mandona.

- Principalmente quando está dormindo, não é, filho? Já o pai dela... Da vovó Sérgia, quero dizer. O pai dela, da vovó Sérgia, foi criado em orfanato, abandonado pelos pais. Não há muito o que dizer da árvore genealógica da sua avó Sérgia; o sobrenome dela, Jacobina Neves, que é um sobrenome clássico, formado por dois sobrenomes tradicionais, se deu por acaso, porque a mãe dela tinha como primeiro nome Jacobina, e Neves era o sobrenome do “Seu” Antônio Sérgio das Neves, pintor de paredes, só isso. Aí ficou assim: Sérgia Jacobina Neves. Há muito mais a dizer da família da sua mãe, o que é melhor deixar pr’amanhã, quando sua mãe estiver de bom humor; hoje ela está um pouco enjoada. Engraçado, estamos há um tempão sendo seguidos por uma camionete cinza, já dei passagem pra ela algumas vezes, ela se aproxima muito devagar, depois acaba ficando pra trás, novamente. Olha, lá vem ela de novo, e está fazendo sinal para eu parar, quem será? Será um assalto? Um seqüestro? A camionete parou. Saiu um cara lá de dentro, êpa!, um cara fardado...

Ricardo V parou o carro no acostamento, mas com o pé no acelerador, pronto para uma arrancada. Foi quando um simpático Coronel do exército brasileiro, que mais tarde viria a ser General reformado, com importante papel na Revolução de 2017, lhe estendeu a mão, muito amistosamente (“Prazer, Fernando”). O então Coronel se explicou:

- Perdoe ter seguido seu carro e lhe ter pedido para parar; é que acabo de vir de um lugar muito estranho, onde ouvi falar do senhor. Ricardo Coração dos Outros V, não é?

- Sim. Mas...

- Procurei-lhe na cidade, a sua empregada me disse que o Senhor iría sair de viagem...

- Como foi que o senhor soube do meu endereço?

- Todo mundo sabe seu endereço em Minaçu, Doutor Ricardo; então, o senhor não é aquele escritor famoso, do livro da revolução que o senhor diz que vai acontecer em 2017?

Ricardo V riu amarelo.

- Não tive jeito senão sair atrás do senhor, sua empregada me falou da cor do seu carro, fez uma descrição dele, não quis me dar o número do seu telefone para que eu lhe pudesse telefonar de jeito nenhum, mas não se importou de me dizer como era o seu carro e com quem o senhor viajava.

Os dois sorriram. O Coronel era muito simpático, nada havia de ameaçador ou prepotente em seu rosto.

- Quando a gente viaja com criança e mulher, tem que dar umas paradas, não é? Sabia que iría acabar tendo a oportunidade de me aproximar do senhor, é que preciso muito falar com o senhor, porque li seu livro e vi um local muito estranho, uma comunidade que fica perto de Minaçu, o senhor sabe do que estou falando?

- Não.

- Podemos conversar um pouco quando chegarmos em Brasília?

- Sim. Vou dormir lá essa noite. Mas... o que esse tal lugar estranho tem a ver com meu livro?

- Aceita o meu convite para jantarmos juntos? Leve sua família. Eu vou só, quem está dirigindo o carro pra mim tem que se apresentar ainda essa noite no quartel. Vamos jantar essa noite juntos?

Jantaram. Rita e Ricardo VI ficaram no hotel.

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