4.29.2021

A CONSTITUIÇÃO NA MESA DE CABECEIRA - 4 – O PAI DOS BURROS

 A crase não foi feita para humilhar ninguém (Ferreira Gullar).

Hermenêutica e Propedêutica se encontravam na farmácia de Hermético para acabar com a peste da Epistemologia. Mas foi no Palácio de Vernáculo que Vocabulário disse à terceira:

- Tu és a pior de todas – isso na frente de Etimologia, amante da ofendida e princesa, rival da rainha Erudição. Esta, percebendo na contenda uma oportunidade, potente  em postura e volume, ordenou à sua premirère femme de chambre:

- Cultura! Mata o povaréu a paulada!

De Rubem Braga a LF Veríssimo, brincar com o sentido das palavras não é nenhuma exclusividade. Na fábula metafórica acima, Cultura, mesmo sendo humilde dama de quarto da sua ama e senhora Erudição, tem o poder de funcionar como madeira de dar no povo. Afinal, no Brasil, se não for a cultura em sentido amplo, das tradições e dos costumes do povo, fica restrita a poucos, deixando a maioria entregue a manipulações de variadas ordens, ainda mais agora, relegada a uma caixinha esquecida em um organograma que ninguém conhece, muito mais para destruí-la do que fortificá-la. Já a poderosa Erudição é o que a Cultura é em nosso país, só que perfumada de enfado e arrogância. Pelo mesmo motivo, a farmácia da fábula pertence a Hermético, do deus grego Hermes, entre outras coisas senhor de conhecimentos nunca dantes revelados. Nem depois.

Mesmo assim, e mesmo tendo acesso à cultura, à educação e à informação, ninguém que não faça uso corriqueiro das palavras empregadas com significados diferentes dos seus verdadeiros na metáfora tem obrigação de conhecê-los. O que isso tem a ver com a Constituição logo se verá.

É claro que epistemologia não é palavra usual, tampouco uma peste. É preciso recorrer a um bom dicionário (há alguns confiáveis inclusive na internet) para saber ou mesmo lembrar que episteme significa ciência, e logos, teoria, em grego, língua do deus Hermes e seus pares. Trata-se portanto da teoria da ciência, do conhecimento, da cognição. Por sua vez, a que assistiu Vocabulário ofender Epistemologia e responde por Etimologia é a ciência que permite encontrar o significado original dos vocábulos, ou das palavras. Já o Palácio de Vernáculo, ora, é o do vernáculo, do escravo nascido na terra do amo, por isso significa aquilo que é próprio de um país - por exemplo, a língua. Quem nos ensina isso é o Dicionário Houaiss. Antigamente se dizia que dicionário era o pai dos burros, e burro é teimoso por não querer obedecer ao amo, ao senhor humano; só que, em matéria humana, burrice é teimar em não recorrer aos dicionários.

Só faltou falar das duas que têm nomes de remédio, que também vêm do grego, o que não é o caso de vocabulário e vernáculo, que se originam no latim. Como não falamos grego (nem latim), vamos aos dicionários novamente.

Tanto no Houaiss como no Dicionário Filosófico de Japiassú e Marcondes, veremos que propedêutica corresponde ao estudo introdutório para conhecer uma ciência. E é a hermenêutica – técnica ou ciência para interpretação de textos, originalmente religiosos, bíblicos – que, em matéria jurídica, consiste em um conjunto de regras ou princípios para interpretar as leis.

E aí chegamos à Constituição.

Juízes e ministros do STF que põem em liberdade alguém que muitos gostariam que fosse mantido preso se baseiam na lei, porém sem às vezes levar em conta outros instrumentos legais – outras leis e a jurisprudência, que nos tribunais anglo-saxões se chama de precedentes (precedents), ou julgados precedentes, – e a doutrina: o ensinamento de juristas. Nesses casos de soltura estranha para a maioria, a hermenêutica pode se basear na letra da lei, que determina com critério e precisão quando, e por quanto tempo, se pode privar uma pessoa da sua liberdade.

Recentemente, um ministro do STF, conhecido por frequentemente devolver a liberdade a alguém que acabou de perdê-la, defendeu renovar os mandatos dos então presidentes do Senado e da Câmara por achar que uma leitura sistêmica da Constituição seria capaz de demonstrar que o constituinte não queria dizer o que disse, justamente no artigo em que a palavra usada é “vedado”. Quem veda proíbe alguma coisa a alguém, ensinou a sua professora, assim como uma colega do referido ministro ensinou a ele. Só para lembrar, hermenêutica é a ciência ou a técnica da interpretação de textos. Se há ou deveria haver limites para uso da hermenêutica em matéria do direito, como ou quais seriam e quem os determinaria, foge muito à nossa despretensão.

Mas, se para a justiça brasileira criássemos outra fábula e a levássemos para o cinema, sem dúvida a celebridade seria a Prisão Em Segunda Instância. Já estrelou vários episódios como vilã e vários outros como mocinha, a depender de quem assistiu ao episódio da vez e quem com ela o estrelava, principalmente no lado réu, e réu, bom também lembrar, é quem se defende. O motivo está no uso da hermenêutica, remédio para uns, purgante para outros, é só saber de que lado estão uns e outros no momento da interpretação do texto legal, que sempre estará associada a argumentos da defesa e da acusação. Mas quem decide é quem julga.

Nossa celebridade, como não poderia deixar de ser, teve e sempre terá como coadjuvante, diga-se, candidata ao Oscar, ela de novo, a hermenêutica, principalmente na interpretação de três incisos do art. 5º da Constituição Federal - a depender de quem julga, sem a eles se limitar:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[...]

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[... – o artigo 5º possui 78 incisos].

 

As palavras-chave são Princípios Constitucionais: Devido Processo Legal; Contraditório; e Ampla Defesa. O Trânsito em Julgado se dá quando a última instância provocada pela defesa ou acusação dá seu veredicto. É de se ter a curiosidade de ler voto a voto os julgados que fizeram a prisão em segunda instância ora ter sido constitucional, ora inconstitucional. Mas por ora ficamos por aqui, propedêutica, hermenêutica e quem sabe hermeticamente, embora a intenção fosse a oposta. Fato é que, se ninguém tem o direito de alegar o desconhecimento da lei, ninguém tem o direito de tirar conhecimento de ninguém nem negar a cultura a ninguém. É vedado deixar quem quer que seja na escuridão da ignorância.

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