10.21.2008

HETERÔNIMOS E INTERVALOS

Intervalo de jogo, intervalo de vida. Segundo Clarisse Lispector, a vida é isto, principalmente: a insatisfação dos intervalos. Não é racional ser torcedor. Futebol é uma doença incurável adquirida na infância. Meu time é bissexto e único - a deter maior história e mais histórias do que títulos. É oportuno dizer seu nome; e inconveniente.

Heterônimos não são um privilégio do Fernando Pessoa – ou dele, a eles, dar vida. Privilégio dele e seus heterônimos é ter definido o que o poeta é.

Por favor, torcedor, complete a frase:

O poeta é um fingidor. Finge...

Segunda questão. O poeta é:

a) Isso mesmo: um fingidor;
b) Um sonhador;
c) Fora da realidade;
d) O albatroz, do Baudelaire (príncipe das alturas, no chão, em meio à corja (!) impura, as asas de gigante impedem-no de andar);
e) Um mercador, em botequins;
f) Aquele que o engenheiro quer ser (todos os direitos reservados: Pablo Neruda);
g) O engenheiro, quando engenhoso;
h) Idem, quando menino de engenho (Viriato Correia, perdão pela metáfora; metáfora?);
i) Um botafoguense;
j) O que faz o laboratório da língua (João Cabral de Melo Neto);
k) Nem alegre, nem triste;
l) Uma parte, linguagem, outra, vertigem;
m) Um heterônimo.

Que o poeta Aldo Votto e seu heterônimo nos expliquem o que é um heterônimo, um poeta, um torcedor, um botafoguense.

E, principalmente, um intervalo.

E que acerte na resposta.

Que – principalmente – erre.

Arre!

mariobenevides.blogspot.com - o pseudônimo de um heterônimo.

Um comentário:

Aldo Votto disse...

Grande Mário!

Explicar é uma tarefa formidável, quiçá excessiva. Sem embargo, entender é uma possibilidade, um desafio, um quebra-cabeças, enfim, quase um entretenimento... E, sem pretender erudição, mas sabedoria do senso comum, revisito meus antepassados em momento de inspirada sinopse para esta busca: Se non è vero, è ben trovato.

Sendo assim, nos lancemos a ela!
1. O que é um heterônimo?

Em primeiro lugar, como a questão foi lançada a mim e ao meu heterônimo, é preciso dizer que na acepção primeira não o possuo, mas numa conotação referencial, sim. Quando de participação nos primeiros concursos que, ao fim, me contemplaram com a classificação formal de poeta, utilizei o pseudônimo Mário Antônio Nogueira; Mário, em tributo ao angelical sulista Mário Quintana e Antônio Nogueira, ao consagrador do conceito de heterônimo: Fernando Antonio Nogueira Pessoa...

E, assim, pretendo uma possibilidade de entendimento. O heterônimo é o verbo das múltiplas facetas de um ser humano que escreve, é, portanto, a palavra emitida pelos recônditos denominados por Freud como ego, id, superego ou por Jung como self, sombra, anima e animus.

Enfim, é o reconhecimento de que o autor é muitos mais do que se apresenta no seu dia-a-dia de cidadão. Quando declarado, o heterônimo diminui a discussão das várias “fases” e faces de um autor: ele próprio se diz multifário...

Mas, mais que tudo Mário, é uma declaração de modéstia e humildade: a palavra do poeta não é dele, mas de outrem. E este outrem é a história humana, ditada pelas musas e pelos anjos, a quem, de fato, pertence à poesia como forma da palavra.

2. O que é um poeta?

Aí está! A primeira resposta vai ajudando a responder as demais... Assim, se houver algum mérito nestas respostas, parte dele será decorrência do mérito da seqüência das perguntas...

O poeta, em termos contemporâneos, é uma antena e um decodificador. Só. Capta o que está aí, na atmosfera da humanidade, decodifica em sinais gráficos e fonéticos, e retransmite, assim, o que sempre se soube e o que sempre se duvidou. Tudo isso na forma que é considerada bela no seu tempo. Porque é conteúdo o que permanece, e é só por causa dele que se reconhece e tolera o belo retroativamente.

3. Um torcedor?

Mário, meu caro, um torcedor é um sujeito que, por exemplo, interrompe a escrevinhação destas linhas para ver a reprodução dos gols da rodada de hoje do campeonato. É um sujeito que fica alegre porque os adversários do seu time contido no próprio tipo O, Rh positivo, perderam e, por isso, a liderança improvável - de um clube de futebol pobre e militar, como militar é a tradição do estado periférico de onde ele vem e que tem mais história do que títulos - fica mantida por mais uma semana de alegria cautelosa.

O torcedor, Mário, é um sofredor. Sofre tão completamente, que chega a sofrer este sofrimento, um sofrimento deveras inexistente.

4. O que é um botafoguense?

Um botafoguense, Mário, é um poeta. Porque capta o que a humanidade entendeu e viveu como um grande futebol, decodifica isto em gritos e crônicas, e afirma o belo que havia nele e que, hoje, só se compreende e tolera retroativamente. Porque tal como hoje a poesia pertence a editoras e eruditos, o futebol pertence a intermediários e televisões. E é por isso, Mário, que este torcedor que te responde entende que o time para o qual dedica seu amor afirma uma feiúra mais verdadeira que a feiúra do futebol por dinheiro: a feiúra do futebol limitado e disciplinado de um canto de mundo que tem mais história do que títulos, mas que nunca jogou ou lutou feio por medo de perder e sim porque lhe faltaram recursos para desenvolver o belo.

5. E, principalmente, o que é um intervalo?

Um intervalo, Mário companheiro, é o que, de fato, mais importa. É no intervalo, Mário, que pensamos, lembramos do interlocutor ausente, e defrontamo-nos com o fundamental metafísico do presente: o tempo que acabou não voltará e o tempo que está para iniciar é mais uma esperança do que uma possibilidade. Porque, Mário, afinal, tragicamente como na Grécia antiga, no Shakeaspeare menos humorado, na cotidianidade do Brasil urbano adolescente, podemos cair fulminados por um infarto decorrente da sensibilidade excessiva do poeta e seus heterônimos ou do torcedor desesperado de alegria ou tristeza pela realização do destino de sua agremiação predileta.

6. Encerramento.

Mário encerro. Com a esperança de que te atendo de forma integral, pois tenho a dúvida absoluta de que acerto... e erro.

Urra!