3.18.2021

DE COMO SER PAI – III – DE VOLTA PARA O PASSADO

 

Quem acredita em sereias sabe os segredos do mar, Fagner e o MPB4 cantaram e deixaram gravado para quem quiser ouvir. Quem não ouve, nem estrelas ouve, e Olavo Bilac vai raspar os bigodes, mas não os dele. Não é nada difícil ser pai e por isso é tão difícil compreender um pai que abandona um filho ou quem veja um filho como um estorvo, incômodo ou alguém a temer.

(Para quem não souber, Fagner e MPB4 (acho) permanecem na ativa. Fagner ficou famoso quando musicou e cantou uma poema da Cecília Meireles (Quando penso em você... fecho os olhos de saudade...), e o MPB4 pode ser visto em "Uma noite em 67", disponível (acho) no Youtube, que vale a pena ser visto - mais que um documentário, é um documento. Já o verso "Olha direis ouvir estrelas" é o mais célebre de Olavo Bilac, poeta que viveu de 1865 a 1918, um clássico da nossa poesia, e que usava bigodes.)

De como ser mãe, nada sei. Mas talvez possa ser útil a jovens mães e pais lembrar mais um pouquinho do comportamento materno durante e após a gravidez. Não me atrevo a falar sobre distúrbios como depressão pós-parto, se não sirvo pra mãe, menos ainda para charlatão. Já falei antes de como Rosa, mãe da Maria Luiza, estava se sentindo na véspera de nossa filha nascer. Tudo a incomodava. No primeiro ano de vida do presente que ganhamos, a história foi outra, com poucos traços de semelhança com a que antecedeu o parto. Rosa era toda atenção à Maria Luiza, em permanente estado de alerta. Naqueles anos ainda se fotografava com máquina fotográfica e se filmava com filmadora. Rosa é fotógrafa amadora de excepcional sensibilidade e precisão, e tem até hoje câmeras fotográficas de alta qualidade, tanto analógicas quanto digitais. Mas a filmadora teve que alugar, e passou um fim de semana inteiro filmando Maria Luiza e tudo ao redor da casa em que morávamos. Dois momentos da filmagem revelam como a mãe recente se sentia. Rosa, além do cuidado com a filha, dirigia e narrava as cenas. Em dado momento, já cansado das suas orientações e alertas, perguntei sugerindo:

- Já filmou ali?

“Ali” era suficientemente longe de mim, com Maria Luiza no colo, e assim distraí um pouco a diretora. Em outro momento, sugeri que pedíssemos uma pizza; também funcionou.

Outro “ali” era “lá”, em Teresópolis, em um belo hotel-fazenda num lugar chamado Quebra Frasco, onde costumávamos nos hospedar em fins de semana de inverno. O jantar de um sábado foi fondue, com aqueles espetos para espetar os nacos de carne e mergulhá-los no óleo quente, que depois são espetados por um garfo, que levamos a um dos 817 molhos postos à nossa frente e depois à boca para mastigar. Maria Luiza sentadinha numa cadeira para bebês, não parava quieta. Desde aquela noite, Rosa se senta na ponta da cadeira, como eu já disse, em permanente estado de alerta. Não me lembro o que foi que a bebezinha fez que chamou tanto a atenção da mãe, que, em vez do garfo, levou à boca o espeto com a carne, espeto e carne muito quentes, e em seguida se levantou para sequestrar nossa filha e fugir com ela para o quarto.  Não dei parte à polícia, mas tive que terminar o fondue às pressas e sozinho. No domingo, já de malas prontas para voltarmos para o Rio, Maria Luiza não parava de chorar, de pura manha. Dizem que carioca é esperto, e, pelo menos naquele dia, este aqui foi. Enquanto Rosa pagava a conta do hotel, eu fui para o jardim com a chorona no colo e fiquei gritando paracabum! umas tantas vezes, e mais uma vez a tese de que mãe é propriedade e pai é brinquedo da criança, no lugar do choro veio uma risadinha, e a volta foi tranquila, com Maria Luiza tirando um soninho naquela cadeira que o presidente do Matai-vos uns aos outros e Ama o torturador como a ti mesmo coerentemente quer banir.

(Entre outras razões, Rosa sugeriu esta série de reminiscências sobre minha experiência como pai para que eu falasse menos sobre política. Mas o atual presidente não deixa, exatamente por querer não deixar que falemos.)

Havia um outro “lá”, que era mais longe ainda, e aquele outro paraíso se chamava Vila Maria, no sul de Minas Gerais, na fronteira com Campos do Jordão, em São Paulo. Foi lá que, antes mesmo de andar com seus pezinhos, Maria Luiza andou a cavalo. Não comigo: tenho um respeito por cavalos do tamanho de um cavalo. Todas as vezes em que tentei cavalgar, me senti desconfortável por estar em cima do cavalo e percebi seu desconforto por estar embaixo de mim. Mas centauros existem, e um deles pegou nossa bebezinha com nossa ajuda e a pôs sentadinha no dorso do seu lado cavalo, e ela achou uma graça que nem na fotografia se pode perceber em tamanho e dimensão, a não ser para quem estava presente quando aquilo aconteceu. Um mês depois, no aniversário de um ano do amigo Bobe, que se chama Rubens mas para ela o nome dele era e sempre será Bobe, lá foi o pai da Maria Luiza andar depressa atrás dela - começando a andar, como o neguinho da canção de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, só que sem apanhar.

Agora é hora de falar da Miriam, que Maria Luiza até hoje chama de Mimi. Mimi trabalhava lá em casa e se tornou a babá da Maria Luiza. Até hoje é nossa amiga e a chama de caçulinha, embora Maria Luiza seja filha única. Não, ela não é nem nunca foi mimada, sempre viveu rodeada de amigas e amigos e logo aprendeu a dividir e somar.

No dia seguinte ao da sua curta cavalgada, no Baden Baden de Campos do Jordão, Maria Luiza de repente saiu do colo da mãe e escalou meu ombro, e eu fiquei tão alegre e surpreso que a chamei de minha periquitinha. Que periquito voa, até quem não acredita em sereias sabe. Alguns nascem em gaiolas, eu sei, é triste, mas há sempre alguém que nos dá um par de periquitos em uma gaiola. Mimi um dia foi alimentar os periquitos que alguém nos tinha dado e um deles voou. Aquilo foi o sinal para que eu contratasse outra espécie de ser alado para instalar uma tela, presa em umas cantoneiras metálicas, na mureta de uma ampla varanda da cobertura onde morávamos; afinal, minha periquitinha não tinha asas.

Por falar em bichos, jamais aceite um coelho de presente. Coelho não quer seu convívio, e gosta de ler bordas de livros com os dentes. Miriam deu um coelho para a Maria Luiza, e o que deixou a Mimi muito mais braba do que eu por causa dos meus livros foi compartilhar sua calça nova com os dentes do coelho.

Filho não é incômodo, é prazer. Um dia difícil ficava mais fácil só de pensar que logo mais à tardinha eu iria ao encontro da minha filha. Isso pode parecer piegas, mas não para quem já passou por isso. Não é piegas não, quando for a hora de ser pai, apenas seja.

Outra alegria que coelho não dá: criança fala.

- Rosa, me passa a batata, por favor.

- Babata!

Essa foi talvez a primeira palavra que a menininha de menos de dois anos disse depois de mamã e algo parecido com papai (além de Bobe, naturalmente). Uns dias depois, outra surpresa.

- Bala, papai.

Ela não gostava de bala, como então me pedia para trazer bala quando eu voltasse do trabalho? Ela insistiu, bala, papai, mexendo os braços. Claro! Ela me lembrou que eu ia pro trabalho sem levar a mala. Eu sei, você não acredita, embora tenha certeza de que cachorro lê nosso pensamento (eu também tenho).

Quer outra? Eu estava na cozinha tentando consertar qualquer coisa que até eu sou capaz de consertar, quando fui interrompido.

- Papai, papai.

- Filha, agora eu não posso, estou procurando a chave de fenda.

- Ali, papai, ali.

Pois é. Não são só os cachorros. Crianças também leem nosso pensamento.

Com três anos, a história é outra, cheia de palavras. Em um casamento na capela do Palácio Guanabara, de dia, Maria Luiza, em pé no banco da igreja, pergunta:

- Gente, aqui tem balanço?

No Natal, a tal da gente tem certeza de que Papai Noel existe, quando, por exemplo, a criança diz:

- Mas esse Papai Noel é muito legal, ele sabia que eu queria ganhar isso e ele me deu isso!

Quem acredita em sereias sabe os segredos do mar, Fagner e o MPB4 cantaram e deixaram gravado para quem quiser ouvir. Quem não ouve, nem estrelas ouve, e Olavo Bilac vai raspar os bigodes.

Mas não os dele.

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