10.01.2011

AS CORES DAS LEMBRANÇAS: UM CONTO DE MARIA LUIZA BENEVIDES

É branco, é limpo, é vazio. De hora em hora moças entram, mexem aqui e ali, reconfortam meu pai com as cobertas. Uma ou outra me oferece um copo d’água, nunca aceito. Desdenho o incolor, o inodoro e o insípido; eles já são suficientes ao meu redor. O hospital sem cores, meu pai deitado sobre e sob lençóis alvos, que dão continuidade à sua palidez. Ele está por fora como está por dentro: ausente. Sua doença levou sua memória e trouxe a minha. O descolorido daqui me faz buscar a pigmentação da minha infância.

Saudade tem cor. É uma tinta misturada com o verde fraco do verão e o bege forte das secas do inverno. Torna-se turva quando junto a ela vêm reflexões presentes. O que me é estranho, pois, nessa hora, o branco não traz clareza, mas escurece. É o alvo medo de perder meu pai. O sertanejo que deixou seu coração no campo, fugiu da sede e encontrou a cidade. Dorme agora, sonha talvez, enquanto eu, acordado há dias, me lembro do que passou.

Vem sombra fresca, vem cheiro doce, vem gosto azedo. Pita–pitangueira–eira–beira-beiradinha, me dá uma mordidinha. Eu, menino, cantarolava assim para arrancar-lhe um pequeno vermelho. Papai ria de mim, enrugava a pele maltratada pelo sol do canto de seus olhos e mostrava-me seus dentes amarelos. Envergonhado pela música de rimas bobas, eu mordia logo uma pitanga e respondia sua expressões com caretas azedas. Ríamos juntos. Nossa melhor amiga.

Éramos muito unidos e, para o desespero de minha mãe, travessos. Roubávamos suas bolas de meia para jogar futebol, seus grampos de cabelo para pinçar minhocas no quintal, seus ovos recém-chegados da feira para jogar nas paredes detrás da casa. Ela nos punha de castigo. Sempre embaixo da nossa árvore. Uma delícia. Aprontávamos tudo de novo.

Aos poucos, o sabor azedo da pitanga, o cheiro seco dos dias quentes e a sonoridade da risada do meu pai desintegram-se no ar desinfetado do hospital. É tudo água novamente. Como aprendi na escola, quando viemos para a cidade, incolor, inodoro, insípido. Acorda logo, pai, colore as lembranças comigo.

Maria Luiza Benevides.

4 comentários:

Regina Carvalho disse...

Excelente! Essa menina tem futuro! Espero que continue escrevendo! bj

Dama Nua disse...

Nao deixe de comentar aqui...
http://damanua.blogspot.com/2011/10/voce-consegue.html?showComment=1318104816772

Dama Nua disse...

Adorei...
muito tocante, nao e todos os dias que tiro um tempo para nao so olhar meus problemas, entao hoje resolvi penetrar um pouco mais na vida alheia... deixei os meu problemas de lado e resolvi compartilhar o quanto e bom saber se seu proximo, seje la quem for, esta bem ou mal...
pois sei que meu mundo nao precisa girar apenas em torno dos meu problemas!
obrigada por me dar o prazer de ler esse texto maravilhoso!

Lorena disse...

Muito bonito Luiza,vi agora a sua oficina no Lago de Histórias e quis pesquisar sobre você.Confesso que você me ganhou!