3.11.2006

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:

UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU
Romance Inédito de Mario BenevidesBrasil, 2005

TERCEIRA PARTE:
A REVOLUÇÃO

- DOIS –

Ricardo V sorveu prazerosamente uns bons goles da cerveja gelada, na varanda da sua casa, de frente para a piscina. Vinha revezando esse novo prazer com as viagens ao Rio, Orlando, Irlanda e Escócia, seus escritos e longas caminhadas, com direito a acampamento, em companhia de Rita e do filho Ricardo VI, pelas trilhas na Chapada dos Veadeiros, suas matas e cachoeiras. Ricardo VI estava com 14 anos e Rita, esplendorosa: o bronzeado produzido pelo sol filtrado pelas matas fazia um belo contraste com seus cabelos ruivos, escondendo um pouco suas sardas, deixando delas somente uma sombrinha graciosa; suas pernas e a barriga geralmente expostas pareciam agradecer ao exercício oferecido pelas trilhas. Mais ainda, Rita vivia fase de grande vivacidade mental; voltara a pesquisar índios e demais raças que habitavam aquele Brasil de 2017 e comparava-os, sem qualquer compromisso científico – muito pelo contrário – com os celtas e suas tradições ainda existentes na Irlanda, Escócia e Galícia. Raças que, no seu entender, teimavam por resistir e continuar a existir, mesmo que vivendo longos períodos das mais diversas formas de submissão.

Numa daquelas caminhadas, deram com a comunidade descrita havia sete anos pelo então Coronel Fernando, sem travar qualquer contato além de cumprimentos amistosos e silenciosos, pois perceberam que se agissem diferente o resultado teria sido igual: o mesmo silêncio observador.

Ricardo V deixou a cerveja de lado, espreguiçou-se, deu um mergulho e deixou mulher e filho na piscina, para tomar um banho e sair de carro. Visitou um dos diversos assentamentos coletivos da região rural e percebeu quase que o mesmo silêncio da “comunidade do General”, como haviam se habituado a chamar os silenciosos da chapada. Tentou puxar conversa com um dos agricultores – um dos mais ativos, produtivos, alguém que soube aproveitar a oportunidade de receber um lote de terra e treinamento para o explorar, e que conseguira obter para o assentamento um bom sistema de logística para entrega de insumos e escoamento da produção, superando exemplarmente a cultura de subsistência -, e só recebeu em troca um amigável sorriso. Tentou novamente: futebol, um sorriso; política, uma cara amarrada, foi o que conseguiu em troca.

Foi até uma bêbada contumaz. Como vai, Dona Zeza, tudo bem com a senhora? Ela levantou o rosto na direção dele, sorriu, fixou seu olhar do de Ricardo V, baixou os olhos e tirou mais um trago do gargalo da garrafa de cachaça. Ele sentiu-se um idiota, debaixo daquele sol estonteante como sempre e pensou em voltar para casa, para sua piscina.

Ou para seus escritos? Ou ao telefone ou à rede – para uma conversa com o General?

Caminhou um pouco mais, entrou no carro e dirigiu até um bar no centro da cidade. Lá, encontrou conversa; pediu um chope, que bebeu de um gole só e foi para casa, um pouco mais satisfeito. Mas intrigado; e atordoado. Sol demais, cerveja demais para sua parca experiência como bebedor, comida de menos, conversa pouca, silêncio demais na zona rural. Lembrou-se de 2006, do Movimento dos Sem Terra, da sua invasão ao laboratório rural de uma multinacional de papel e celulose. 20 anos de pesquisa destruídos por algumas mulheres pobres e ignorantes, em nome de um “protesto para chamar a atenção da sociedade”, à guisa de atacar “os novos inimigos: as transnacionais” – palavras do líder do MST.

Que silêncio era aquele?

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