1.24.2006

O QUE, AFINAL, LETRAS TÊM A VER COM LUTA DE BOXE?

Curioso ritual é uma luta de boxe. Os dois sobem ao ringue com seus calções fulgurantes, botas até quase os joelhos, luvas colossais, na boca, uma proteção que os deixa com ares mais ainda enfurecidos, concentrados, um juiz de gravata borboleta. Nos cantos, treinadores e assistentes, com seus conselhos, baldes d’água, curativos. No ringue, o boxeador toma na cara de punhos cerrados e vestidos de luvas; no canto, leva tapas de mãos abertas e desnudas, a título de reanimá-lo a tomar novos socos de luvas coloridas. A platéia urra, como urrava no tempo dos gladiadores e seus leões. Pela tv, o que mais chama a atenção são os esguichos de sangue que explodem dos supercílios, os olhos já inchados, uma certa imbecilidade no olhar, não mais a fúria concentrada. Há o “clinch”, abraço de arrego de um lado e de urso do outro, o se jogar nas cordas e o se quedar no chão, ouvindo a contagem regressiva do alívio e da derrota.

Nomes como Sugar Ray Robinson e Joe Louis são lendas; mas Cassius Clay, depois Mohamed Ali, é o real. Peso pesadíssimo, gingava como um dançarino. Houve uma luta que é um clássico, quando dançou de guarda baixa, aberta, para exaurir seu adversário apanhando, e apanhando mais, até que ele, o adversário, não agüentou mais e, então, foi a vez de Mohamed / Cassius bater e bater e bater, até nocautear o incrédulo. Mohamed, hoje em dia, sofre de mal de Parkinson, das trombadas que tomou na sua cabeça de campeão, de cérebro privilegiado, astuto, olhar de Glauber Rocha, dizendo não à guerra, uma guerra em que os americanos não salvaram mundo algum do comunismo, o qual, do mesmo modo, não dominou mundo nenhum, apenas matou-se e morreu-se e barbarizou-se de parte a parte inutilmente, covardemente, trogloditamente, não muito diferente do Iraque de hoje. Cassius / Mohamed sentado por trás das grades, protestando, com ares de quem fazia cocô.

Mike Tyson não lutava; derrubava e ia embora; era outra luta. E foi preso, também, por motivos menos nobres, mais violentos, mais ainda fora do ringue.

Chineses inventaram o Tai Shi Shuan para que o inimigo não percebesse tratar-se de uma luta, com seus golpes simulados em lento movimento, para ser rápidos somente de surpresa, durante uma luta de verdade. Já o boxe, não se sabe até hoje se é permitido chamá-lo de esporte, tal é sua violência. Entretanto, sua dança, seu gingado, seu avançar e recuar de corpo, braços e punhos, toda sua pungência e explicitude dão ao boxe um lugar específico, invisível, no vácuo entre a dança, o esporte e a barbárie. Esses foram os motivos que levaram esse poeta-escritor, que se esconde e se mostra, via, por enquanto, gavetas e internete, a treinar boxe, duas noites por semana, sem confronto direto, apenas a ginga, o avançar e recuar, o esquivar e ameaçar, o socar o ar e o saco de pancadas, o suar infinitamente, a percepção de que pular corda é o oposto de andar de bicicleta, parou, esqueceu, é preciso aprender de novo. Curiosa sensação, a de freqüentar e cumprimentar e compartilhar um grupo tão díspar, fortões de braços tatuados, jovens gordotes que parecem ter sido mandados pra lá pelo pai ou pela mãe, poloneses que parecem ter acabado de deixar a lavoura ou as prateleiras do supermercado, um cinqüentão. Assim, lá se foram da minha vida pelo ralo mais alguns preconceitos. Obrigado, Mohamed.

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