Formatura da turma 2021/1 de Direito da Unisul
Carta ao Direito
Mario Benevides – 26 de março de 2022
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Às senhoras e aos senhores membros da mesa e a
todas as pessoas que estão aqui conosco,
boa noite.
Venho aqui compartilhar uma carta-poema
dirigida a um amigo de todos nós, dentro ou fora deste ambiente. Importante
lembrar o que disse Vinicius de Moraes:
amigo a gente não faz, amigo a gente reconhece.
Como toda carta, começa com local e data.
Florianópolis, 26 de março de 2022.
Meu caro amigo Direito:
Começo por te dizer que de cor nada tem a ver
com decorado, ou memorizado:
de cor quer dizer do coração.
Pois é assim, amigo Direito, que te dirijo
essas palavras: do coração.
Sem te pedir permissão, de público.
Falando em memorizar,
sabias que, nesta noite inesquecível,
teremos uma festa com direito a open bar?
Então bebamos também água e juízo
Para que a noite, além de inesquecível, seja memorável.
Te quero, Direito, mais que amigo do peito.
Todos te queremos caminho para a Justiça.
Mas, se Drummond encontrou uma pedra no meio do
caminho,
no caminho para a Justiça, para os menos
afortunados,
há uma rocha.
Em vez de instâncias, há distâncias.
Não raro, são presos por furtar comida,
sem direito a julgamento.
Darcy Ribeiro disse há muitos anos
que se governantes não construíssem escolas,
logo estariam construindo presídios.
Por isso, Direito, a escola pública tem que ser
a escola do Darcy:
em tempo integral,
com crianças e jovens aprendendo,
praticando esporte,
em contato com a arte,
com alimentação, recreio e banho,
levando ensinamentos para os seus,
longe do crime, da milícia e da polícia.
Educação é oportunidade,
trabalho digno é oportunidade.
Um povo sem oportunidade é um país sem
oportunidade,
fadado a ser um PIB, nada mais que um PIB.
Direito, não te quero mais nem menos
que qualquer outra ciência, arte ou ofício.
Por isso te quero lado a lado com a matemática
e as línguas
desde o ensino fundamental.
Quem tecla no celular com a velocidade da luz
certamente é capaz de compreender teus
conceitos
da importância das leis, do saber que,
o que é de direito,
tem que ser direito, e não omissão ou vedação.
Quem tecla no celular com a velocidade da luz
certamente é capaz de entender o que é dever
e que o dever é somente dever,
e não um dedo em riste ou uma arma no nariz.
Te quero, Direito, no ensino médio e
profissionalizante,
a Pirâmide de Kelsen
com a Constituição no topo
a irradiar valores e princípios às leis.
Te quero fato, valor e norma do nosso Miguel
Reale
explicados com simplicidade e prazer
no ensino médio e profissionalizante.
Uma teoria mais ou menos recente é a das partes
interessadas.
Por exemplo, amigo Direito,
o Ministério do Trabalho deve existir para
representar quem trabalha,
o Ministério da Empresa deve existir para
representar quem empreende,
e o Ministério da Fazenda deveria se chamar
Ministério do Contribuinte.
Concordas, Direito?
Sem conhecer essa teoria, no século XIX,
o alemão Ferdinand Lassalle defendeu que uma
constituição
deveria contemplar todas as partes interessadas
da sociedade
ou não passaria de uma folha de papel.
Já no século XX, outro alemão, Konrad Hesse,
defendeu que a constituição não deve ser vista
como mero papel,
e essas duas formas de pensar não me parecem
contraditórias
e sim complementares.
Pois é isso que é a Constituição da República
Federativa do Brasil:
contempla todas as nossas partes interessadas,
é escrita em papel e está disponível nas nuvens
que acessamos todos os dias.
Se o Hino Nacional todo mundo canta mas ninguém
sabe a letra,
da Constituição, todo mundo fala, mas ninguém
lê.
Por isso fazem gato e sapato de nós,
por isso passam tratores sobre nós,
perdidos na nuvem do não-saber.
Tudo poderia mudar, Direito, se o que se enseja
no preâmbulo da Constituição –
uma sociedade livre de preconceitos tendo a
liberdade e a justiça como valores supremos,
comprometida a resolver controvérsias internas
ou com outros povos pacificamente -,
fosse dado de beber como a água do bebedouro da
escola e da universidade.
Eu,
que vi a Constituição ser fecundada nas marchas
das diretas já para presidente em 1984,
que acompanhei e debati seu texto dia após dia
em 1987 e 88,
logo te reconheci amigo.
A engenharia, que me trouxe até aqui, permitiu
que nos tornássemos melhores amigos
com três vezes os 22 anos com que me graduei
naquela outra ciência.
Por isso acredito que teríamos menos palavreado
enganoso e nuvens de fumaça
se os Fundamentos da República Federativa do
Brasil –
a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo
político - fossem dados de comer
a quem come nos refeitórios e lanchonetes da
escola e da universidade.
Se a plena noção e a paixão do que reza nossa
Carta Magna –
os Poderes são três, exclusivamente três, e todo
poder emana do povo,
que em maioria crê em Deus e quer Estado e
religião distantes um do outro -,
fosse dado de beber e de comer a quem tem sede
e fome de saber e pertencimento,
calhordas não se atreveriam a nos ameaçar com
nossas armas,
a rasgar nossa Constituição e ameaçar nossa
democracia,
nem ousariam a nos empulhar com sórdidos
pseudopastores
a se imiscuírem em assuntos de Estado.
Darcy Ribeiro também alertou
que a crise da educação no Brasil não é uma
crise, é um projeto.
Isso explica, amigo Direito,
porque arrancaram tuas vizinhas sociologia e
filosofia do currículo escolar.
Nesses tempos em que a senhora robótica,
cheia de vitalidade e capacidade de reprodução,
se uniu à jovem e brilhante inteligência
artificial
para nos livrarmos do que para nós possa ser um
fardo,
o projeto é criar autômatos humanos a perder
seus empregos para os de plástico e metal,
a perambular invisíveis, drogados, traficando,
prostituídos a caminho do presídio
e da loucura.
Direito, considero a palavra tolerância tão
injusta e arrogante quanto a sua oposta.
No lugar de tolerância, o que a maioria de nós
quer é convivência respeitosa e pacífica.
Se tu estivesses nos bancos escolares e universitários,
talvez o preconceito e a covardia contra
negros, índios, mulheres e LGBTQIA+,
entre outros, desaparecessem.
Da mesma forma, estou certo de que no dia que
princípios e valores
sejam dados de presente à infância, à
adolescência e à juventude,
gente que ri quando deve chorar e não vive,
apenas aguenta
ficaria na triste memória desses nossos tempos
em que esses versos musicais de Milton
Nascimento e Fernando Brandt
persistem a conviver com nossa indiferença.
Dia haverá, meu amigo Direito,
em que a nossa sociedade será pautada pela
Constituição da República,
e todos temos certeza
de que esses jovens que se formam hoje serão
parte fundamental disso.
Talvez chegue ainda outro dia, longínquo dia,
em que a sociedade será tão respeitosa, solidária
e amiga
que as leis não sejam necessárias,
e nesse dia, talvez utópico dia,
tu, Direito, não serás necessário.
Não chores, meu amigo.
Quando não fores mais necessário,
para sempre serás bem lembrado
por causa do segredo que me sopraste ao ouvido
logo quando comecei a rascunhar mentalmente
esta carta,
logo no começo dos teus ensinamentos,
segredo que, mais uma vez, sem tua permissão,
aqui e agora revelo.
Tu, Direito, para sempre serás lembrado
pelo teu verdadeiro nome.
Afinal, Direito, teu nome
é respeito.
E que em um dia próximo esta palavra substitua
o obsoleto, incompreendido e por isso tantas
vezes distorcido Ordem e Progresso da bandeira do Brasil.
Que um dia o respeito seja gravado na bandeira
e na alma brasileiras.
É o que mais quero,
querido amigo Direito.
Muito obrigado.