9.27.2005

A PROIBIÇÃO DA VENDA DE ARMAS; UMA DISCUSSÃO EM TEMPO REAL

A discussão tem sua razão. Andam se matando por aí a troco de troco. Depois, ao entrar numa loja e pedir uma Parabelum, ninguém lhe perguntará se é com açúcar ou adoçante.

Você já passou pelo teste e afirmou: armas usadas pelos bandidos não são compradas na loja. Além disso, você já se viu no espelho a dizer que tem todo o direito de se defender e portanto portar uma arma. E mais. Você já repassou aos amigos a mensagem da Internet que alerta: - Atenção, você não terá arma em casa e seu vizinho também não e o bandido terá certeza disso e você estará indefeso e não poderá pedir socorro a ninguém, somente à polícia, que está mal armada e impotente. (Ou mal amada e impotente.)

Você não se conhece o suficiente e não comprará uma arma porque tem medo de ficar triste e resolver acabar com a tristeza com um tiro na própria testa ou na de quem você mais ama. Teme também que limpar a arma lhe dê uma mortal dor de cabeça. Você também conhece seu filho e sua filha e sabe muito bem que eles poderão brincar de bang-bang ou traficante-mirim e bang-bang, pronto, um dos dois foi ao chão com uma bala no coração ou na mão que chateação ter que ir ao hospital na hora do Fantástico.

Mas a proibição leva à contravenção - basta lembrar da Lei Seca, nos Estados Unidos de Al Capone; por outro lado, deixar como está poderá manter tudo como está ou incentivar a quem jamais pensou em comprar uma arma, a adquirir uma ou duas.

A quem interessar possa, vou continuar não tendo nem comprando armas e votarei pela proibição da sua venda, porque: (i) acho perigoso demais ter-se dentro de casa o risco da facilidade mortífera que uma arma de fogo proporciona; (ii) trancá-la a sete chaves é o mesmo que não possuí-la; (iii) o bandido sempre terá mais motivos e destreza que a vítima em usá-la, especialmente quando se sentir por ela ameaçado; (iv) gritar “socorro” aos vizinhos quando se está ameaçado por alguém armado, nos dias e no Brasil de hoje, me parece mais provável como auto-sentença de morte que real perspectiva de socorro; (v) sou otimista: caso vença a proibição, os fabricantes de armas as continuarão fabricando – só que exclusivamente para as forças armadas, e estas serão mais cobradas por uma sociedade desarmada; (vi) o argumento de que o referendo à proibição do comércio seja manobra para um golpe de estado, primeiramente desarmando a população e depois via associação com o tráfico, é esquecer que a história mostra que nenhum golpe de estado surgiu e prevaleceu sem amparo de significativa parcela da população, no mínimo em poder relativo na sociedade – e, por pior que esteja o crédito dos políticos, há claras demonstrações de que o que a maioria quer é aperfeiçoar a democracia e não jogá-la fora, além de não haver nenhum real poder ameaçado a ponto de se arriscar em aventura desse tipo. E, otimista que sou, ainda que o tráfico possa ter representantes dis-farc-çados no Congresso, não consigo imaginar nem esquerda nem direita brasileira, com efetiva representatividade, sócia do tráfico para alçar o poder à força.

Assim, com todo respeito a quem pensar diferente e sem nenhuma pretensão idiota de defender uma bandeira, se me perguntassem Vai um diet Colt aí?, minha resposta seria Não, obrigado.

9.24.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:


UM BRASILQUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADVINHOU
ROMANCE INÉDITO DE MARIO BENEVIDES
BRASIL, 2005
- CAPÍTULO VINTE E SETE –

Mamãe, mamãe! Papai, papai! A Coluna passou por aqui! A Coluna Prestes passou em Cavalcante!

Ricardo VI estava com dez anos (era 2013). Cavalcante, àquela altura, já contava com boa parte da sua população formada por europeus e americanos, que para lá haviam se mudado para abrir pousadas e outras formas de comércio de turismo ecológico. A terra mais valiosa era, agora, a NÃO agricultável - que não tivesse sido preparada para pastagem ou cultivo e que guardasse o que não existia mais em outros lugares: pedra e mata virgem. Ainda assim, era grande ainda a distorção social no município.

No começo do século XXI, quando Ricardo V estava iniciando seus escritos que terminaram por prever a Revolução de Mentalidade de 2017, Cavalcante detinha o segundo índice de desenvolvimento humano do Estado de Goiás – isto é: o segundo pior. Não era muito diferente em 2013. Município de área muito grande, com a maior comunidade quilombola do Brasil – os Kalungas -, e dez mil habitantes, Cavalcante possuía, em 2005, o privilégio de uma proporção de habitantes por quilômetro quadrado muito mais favorável que São Paulo e outras capitais; também por isso, já naquele tempo, começou um fluxo migratório interessante de grandes cidades brasileiras e estrangeiras, aumentando o contraste de traços de cultura, origem e condições sócio-econômicas.

Freudianamente, é comum homens se envolverem com mulheres que, de algum modo, se parecem com suas mães. Maria Otávia, ex-namorada de Ricardo V, cujo apelido era Opinião Pública, morta prematuramente, obcecava-se por uma determinada idéia e a repetia e repetia e repetia. Em 2005, Ricardo V, já casado com a americana Rita e morando na cidade vizinha a Cavalcante, Minaçu, Sérgia estava obcecada em demonstrar que as diferenças sociais do Brasil independiam da situação econômica ou política. Fosse em palestras, chás beneficentes ou almoços, Sérgia insistia:

- De JK a Lula, passando pelos militares, Collor e FHC, com ou sem inflação, com ditadura ou democracia, crescimento ou recessão, estatização ou privatização, de cada cem moedas produzidas no Brasil, dez porcento da população ficam com quarenta das cem moedas. O resto – os outros noventa porcento – ficam com o resto: sessenta moedas são repartidas por noventa, enquanto quarenta, pelos dez mais ricos.

O panorama, como se sabe, só mudaria há três anos, em 2017.

Em 2013, a obsessão do filho de Ricardo V e Rita era a Coluna Prestes – isso porque seu pai dissera a ele que o trisavô de Ricardo VI, Ricardo Coração dos Outros II, participara da longa e emblemática caminhada liderada pelo Cavaleiro da Esperança – como ficaria para sempre conhecido Luís Carlos Prestes.

Pois em 2005, a obsessão de Ricardo V era Cavalcante, para desvendar o passado dos trisavós dele, Ricardo V, que haviam iniciado aquela plebéia dinastia: Olga e Ricardo Coração dos Outros – no que era muito incentivado por Rita, entusiasmada com o clima mais ameno que Minaçu e especialmente pela paisagem. A Chapada dos Veadeiros é das mais deslumbrantes paisagens que podem existir – Rita afirma até hoje, e tenta explicar porque:

- As montanhas de pedra cercam as cidades, as trilhas, os povoados pobres que moram em casas de adobe e sapê, os bichos que correm na frente do carro quando a gente está vindo pra cá, veados, onças, cobras, siriemas...

Quando, no começo deste Século XXI, Rita ainda trazia Ricardo VI no ventre e voltavam pela primeira vez de uma viagem a Cavalcante, a camionete derrapando e pulando na estrada de terra, Rita teve um pequeno sangramento e temeu perder o filho em formação na sua barriga; Rita, que apesar de descendente de espanhóis e franceses, não era católica, nem tinha qualquer outra religião, ali, naquele momento, mirando a chapada, desandou a rezar "Holy Mary" e "Our Father" sem parar.

Era disso que Rita se lembrava quando, em 2013, Ricardo VI, com dez anos, chegou correndo à mesa onde estavam com um casal seu conterrâneo, dono de uma pousada, dizendo Mamãe, mamãe, papai, papai, a Coluna passou por aqui, a Coluna Prestes passou em Cavalcante. Depois, foram até uma das muitas cachoeiras, a pé, molhar os corpos e sacudir os cabelos.

9.19.2005

DA ATLÂNTIDA E DE TAPETES

Estive em Nova Orleans em 1987, no Mardi Gras – a terça-feira gorda, o carnaval em ritmo de jazz. Mais que do jazz carnavalesco, me ficou na lembrança uma orquestra de músicos velhinhos, bacaninhas, de gravatas borboleta, tocando o Dixieland Jazz. A alegre sucessão de bares e mais bares sempre com músicos tocando maravilhosamente; a Bourbon Street, de tantas canções, como a do Sting, que lembra uma outra, Falling Leaves, gravada imortalmente por Net King Cole; a comida criolla, o French Quarter, o rio Mississipi, as casas sem muro na frente – tudo isso trago para sempre guardado no porta-retrato da minha memória mais afetiva. Turista deslumbrado com aquela musicalidade, com a mistura de cores, raças e culturas, a história sofrida dos escravos das plantações de algodão me era passado; não conheci o lado pobre da cidade – que apareceu agora, paradoxalmente, com o seu desaparecimento, tão triste, como se já não fosse tristeza bastante a pobreza em si.

Naquele carnaval, um americano, ex-mariner, quando soube que éramos brasileiros (eu e meu irmão), fez questão de nos dizer: “Já estive em Trinidad Tobago”. O mapa dele deve ser o mesmo do atual presidente americano e daquele outro, que confundiu o Brasil com a Bolívia. Não deixa de ser preocupante perceber que esse sistema de coordenadas deles poderá, em dado instante, nos transformar em imensa Venezuela de seu desafeto Hugo Chaves - principalmente se este tornar assíduo de jantares com nosso principal executivo.

A boa notícia é que a Coréia desistiu do seu programa nuclear. A má notícia é que a mudança de postura foi decorrente de uma negociação com o governo Bush. A notícia oficial é que ela se deu porque a Coréia está precisando de ajuda do Ocidente. Bem que a tática pode valer de sugestão para a Venezuela – perdão - para o Brasil: nossos governantes deveriam iniciar um projeto de bomba nuclear e continuá-lo até que incomodasse nosso Grande Irmão nortista; quando isso acontecesse, o Haiti – perdão – o Brasil estaria em condições de barganhar alguma coisa, como o tal assento no Conselho de Segurança da ONU – desde que, é claro, Severino nele se sentasse, já que tudo indica que ele ficará sem emprego, e nosso executivo-mor não admitirá que um brasileiro fique sem emprego – já que presidentes só admitem que muitos brasileiros fiquem sem emprego, porque aí vira mera questão estatística.

Voltando à Atlântida de nossos dias, há que se torcer para que os arquitetos da sua reconstrução fiquem longe de Bush e Dick Cheney. Essa gente não foi capaz de prestar socorro, como não será capaz de reconstruir uma cidade tão delicada, habitada por negros e brancos de todas as idades tocando todos os sopros e cordas, ainda que escondesse debaixo do tapete a pobreza e a exploração de outras formas de pobreza. Bush e companhia vão faturar a reconstrução de Nova Orleans, como pretendem fazer com Bagdá e seus tapetes um dia voadores – é o inevitável. Mas que seu imenso mau gosto não se manifeste.

Quanto a nós, do país de Severino, personificação do ticket-refeição, é claro que não esquecemos seu nome: aqui é o mesmo Brasil de sempre, onde se tocam também tantos sopros e tantas cordas, mas com uma fundamental diferença: o tapete é curto.

Cada vez mais curto.

9.16.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E SEIS -

Contou-nos um PCR que um trisavô seu, jornalista (como se chamou a profissão de Profissional de Comunicação e Reportagens durante muitos anos), passou de geração a geração um desabafo que ouviu de Ricardo Coração dos Outros II na Bolívia, onde a Coluna Prestes, à qual se engajara, encerrara sua invicta (ainda que não propriamente vitoriosa) caminhada de 25 mil quilômetros:

- Fui idiota de largar a roça, onde o aperto de mão tem na pureza e na sinceridade o mesmo peso e a mesma pega da rugosidade dos calos feitos na lida permanente com a terra sedenta ou encharcada, para me enfeitiçar pela capital, onde o aperto de mão tem a leveza da imunda falsidade e da débil futilidade; mas recuperei-me e vinguei meu pai: se ele entrou na guerra do lado dos opressores, tive a honra de seguir o Cavaleiro da Esperança e o general Miguel Costa contra Artur Bernardes e sua Lei Infame e a opressão da roça e da cidade. Mas fui mais idiota ainda e mais enfeitiçado ainda pela futilidade personificada chamada Maria Cristina. E ainda sou. Sim senhor, aquela senhorinha de nariz que não pode tomar chuva sob o risco de matá-la afogada em sua própria imbecilmente suposta superioridade sobre todas as coisas e os mortais, principalmente os plebeus e mestiços, como eu, me enfeitiçou, e parece que para sempre. Que idiota eu sou!

E se, muitos anos depois, Ricardo V se sentia um idiota por se perceber seguido por quatro idiotas, dois mandados dos Estados Unidos e dois pelo Tenente, anos depois ainda Ricardo IV, seu pai, diria de si a mesma coisa ao neto, Ricardo VI:

- Sou um idiota a misturar idealismo com negócios, coisas que não se misturam, e desandei a misturar uisque com hepta-endorfina, para ver se era possível o impossível, misturar o que não se mistura, como água e óleo, como costumava dizer meu avô. Às favas com os negócios ou com o idealismo, porra! Desculpe, meu neto, desculpe.

O mesmo Ricardo VI, ainda menino, uma noite, ouviu a avó, Sérgia, medindo-se com a mãe dele, Rita, no mesmo quesito, na sala de visitas da avó, no Rio de Janeiro, já havia muito não mais capital federal como no tempo de seu trisavô, Ricardo II:

- Idiota sou eu. Ora, você deixou seu país movida por um ideal, uma pesquisa científica.

- Que não deu em nada.

- Não por culpa sua.

- Sim, por culpa meu, culpa minha, porque fiquei comovida com a história dos avá-canoeiros sem possibilidade de cruzamento, quer dizer, casamento, procriamento, quer dizer, procriaçau, e pesquisadora não pode ficar comovida, tem que pesquisar e estudar e entender e escrever, e eu não escrevi, não escrevi nada.

- Mas seu marido escreve e você o ajuda, não é?

- Mas me anulei, sou mãe e pronto. Rita ficou em silêncio, refletindo um pouco, e disse, depois:

- Mas eu gosto de ser mãe e mulher, mulher de seu filho. Me faz bem.

- Mesmo morando numa cidade como Minaçu, sem recursos, provinciana?

- Cidades americanas são quase sempre provincianas, não faz mal. A não ser as grandes, que eu não gosto. Recursos, quer dizer, cultura, hospital, remédio, a gente arruma viajando e a gente pode viajar sempre, a toda hora, não é problema.

Depois de outra pausa, Rita voltou ao assunto, como quem havia provado alguma coisa à sogra:

- Viu como a idiota sou eu? Sérgia inspirou profundamente e respondeu:

- Minha filha, ninguém é mais idiota que eu, me escondendo atrás de um disfarce babaca e cretino de culta e educada e refinada e politizada. Sabe do que eu gosto, mesmo? Eu gosto é de...

- Não precisa dizer. Eu também gosto. Todo mundo gosta.

E aí riram um pouco das suas idiotices.

Já Dona Luzia, reassentada por uma das hidrelétricas que superou a praga da cultura da dependência e da subsistência e plantou e planta de tudo e se alimenta e se veste e pagou os estudos dos netos do que produziu e produz, e que hoje caminha em torno da plantação dando instruções e depois senta-se em uma velha cadeira de balanço e repete que quem crama da vida é porque não trabaia e desanda a contar como foi sua participação na Revolução de 2017, de vez em quando lembra do que ouvia de vizinhos, o que eles assistiam numa televisão não sabia de quem, isso no tempo em que a tv mostrava o presidente fazendo um discurso por dia, um dia para operários, outro para camponeses, outro ainda para fazendeiros, às vezes para assembléias de nações ou artistas de Hollywood ou da tv, até para estudantes e também para empresários ou então bispos ou domésticas ou donas de casa, ou quando as notícias eram pré-fabricadas para satisfazer ditadores ou interesses, e pensava, Deus, quanta idiotice.

9.12.2005

AS MATEMÁTICAS

Matemática não é uma só.

Matemática é matéria complicada para muita gente, especialmente quando quem ensinou era muito complicado.

Matemática, quando é financeira, bota complicado nisso: deixa de ser ciência exata e se torna fixação, insônia ou, ainda, a soma inexata das duas coisas.

Bom mesmo é quando a Matemática é coisa simples, aritmética, e não matéria complicada; quando nem matéria é. Exemplos:

Dois mais dois igual a quatro - ninguém seria superficial e tosco a ponto de dizer “isso é Descartes”. Mas que tem vontade, tem;

Um sobre zero tende a infinito e um sobre infinito tende a zero: ciência política;

A quarta dimensão é Freud. A quinta, Jung;

Espaço enésimo? Freqüente aí uma mesa de bar por volta das duas da manhã e depois nos conte;

Tábua logarítmica: o mesmo que Latim;

Multiplicar por menos um é muito utilizado por quem usou o cheque especial uma única vez e não consegue entender porque foi que passou a usar para sempre;

Raiz quadrada: (1) jamais fique embaixo de um radical; (2) o resultado é mais ou menos.

E assim fica demonstrado o corolário de que, em tempos em que a descoberta é de escândalos políticos em série de Fourier, deve-se, com todo e devido respeito ao seu criador e sua admirável “transformada”, transformá-la em resultado que fique na nossa memória para sempre, em todas as eleições. E delas, jamais abrir mão.
Nem das Matemáticas.

9.10.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E CINCO -

Porca miséria. Onde foi que eu deixei o maldito diário, com as anotações daquele Preston e as minhas? E agora? Vá, é preciso começar tudo de novo, lembrar do que estava lá, anotado pelo desgraçado do americano e por este imbecil, aqui.

Giulio – o falso Doutor Vincenzo Scarpini - saiu pela Avenida Maranhão e entrou na primeira papelaria que encontrou. Não percebeu, mas, atrás dele, estava um policial fardado, que escutou o forte sotaque italiano encomendando um caderno. O Tenente afastou-se e atravessou a rua. Quando Giulio saiu, sem que percebesse, foi discretamente seguido. Giulio estava hospedado em um hotel chamado Cadoro. O Tenente telefonou do seu celular para Ricardo Coração dos Outros V:

- O senhor me disse que o diário que eu emprestei pro senhor traduzir pra mim estava em que línguas, mesmo?

- Inglês e italiano.

- Gostaria de ir à sua casa agora, pode ser?

Ricardo estava escrevendo e teve vontade de dizer que não; mas logo lhe ocorreu que o assunto deveria ser sobre o diário encontrado no La Ventana pelo Tenente. Respondeu que sim, escreveu mais um pouco e foi para a sala, aguardar pelo Tenente, enquanto Rita passeava pela cercanias rurais da cidade com o filho, Ricardo VI. O Tenente desligou e, em seguida, deu uma ordem, ainda pelo celular:

- Figueiredo, você venha à paisana até o Cadoro e se apresente ao gerente como fiscal de qualquer coisa. Inventa o que você quiser, monta uma carteira daquelas padronizadas, mas venha à paisana e rápido. Peça o livro de contas do hotel e depois o de hóspedes. Nesse de hóspedes, pegue e anote o nome e o apartamento de um italiano. É, um italiano, só sabemos disso, por enquanto. Anote também a data em que ele se hospedou, positivo? E aí fique de plantão no saguão do hotel, peça para ver todos os livros de controle, ganhe tempo, mas fique, para ver se o italiano deixa o quarto dele; se ele sair do hotel, siga o elemento, positivo? Seja criativo, mas não faz besteira, combinado?

Na sala de Ricardo V, o diálogo deu-se mais ou menos assim:

- O diário tem uma primeira parte com anotações em Inglês, descrevendo meus movimentos pela cidade – disse Ricardo.

- O senhor fez alguma coisa de errado? Tá devendo dinheiro, ou coisa parecida?

- Não. Apenas escrevo textos para uma universidade americana e também um livro.

O Tenente ficou em silêncio, mexendo a colher na xícara do cafezinho que lhe fora servido por Lindalva, a empregada loura da casa. Depois perguntou a Ricardo:

- Seus escritos falam de quê?

Ricardo mentiu:

- Sobre possibilidades de turismo no cerrado.

- Ah, que interessante. Mas isso não é motivo para ser seguido, não é, doutor?

- Não.

- E o que foi que o italiano escreveu, na parte dele do diário?

- A mesma coisa: está seguindo meus passos - respondeu. O Tenente disse:

- Pode deixar, doutor. Do americano eu não sei, pode ser que tenha alguma coisa a ver com aquele camarada que ficou falado por aqui, na época que o senhor e Dona Rita vieram pra cá. Mas esse italiano já está na minha mira.

- Tenente, se o senhor puder fazer o favor de não... Quer dizer, de não deixar esse italiano ser molestado e depois arranjar um jeito da gente conversar com ele...

- Esse é o meu trabalho. O senhor pode voltar pro seus escritos.

O Tenente despediu-se e, depois de telefonar para seu subordinado Figueiredo, deu outro telefonema do celular:

- Pedrosa, a partir de hoje, você deixa a farda em casa e cola no Senhor Ricardo. Aquele com jeito meio maluco, casado com a americana, Dona Rita. Sabe quem é? Isso mesmo: Ricardo não-sei-o-quê quinto. Pode vir agora e passa a rondar a casa do elemento, positivo? Tem que ser discreto. Eu sei: esse é o teu trabalho. Mas toma nota, presta atenção em tudo e vai me informando, tá me entendendo?

Pedrosa respondeu que sim.

9.06.2005

IMPRESSÕES AO DIRIGIR

Nova Lima fica entre Belo Horizonte e Ouro Preto, em Minas Gerais. Estou hospedado em um hotel de negócios, criado especialmente em função de uma instituição de ensino, a Fundação Dom Cabral, ligada à PUC de Minas. Dom Cabral foi um bispo preocupado em aproximar a Universidade às empresas; daí ter surgido um curso com o nome dele para administração de negócios - um MBA (lê-se emm-bi-ei), como cunhado em todo o mundo. O hotel e o prédio onde acontecem as aulas (uma semana, de domingo a sábado, a cada dois meses) ficam num condomínio de casas em torno de uma lagoa, onde já foi uma mineração. Antes das aulas, a Fundação organiza caminhadas, precedidas e encerradas por exercícios de alongamento – destes que a gente tem a impressão de que a real intenção é a de nos preparar para outra profissão, de um mercado disputadíssimo: a dos artistas de circo.

Era aí onde eu queria chegar: essas caminhadas são conduzidas por belas e competentes e simpáticas e pacientes profissionais. E o ar é de montanha e hoje de manhã estava friozinho, parece ter chovido um pouco de madrugada. É bom demais! Demais da conta, sô.

Na ginástica de encerramento da caminhada de hoje, um amigo (Cascaes, natural de Florianópolis) comentou ter visto um gavião pousado em um transformador de poste, acrescentando que, de certo, não era um gavião qualquer, pois o condomínio é de luxo. Aí nossa professorinha (Graziela) disse que uma sua tia uma vez tirou do congelador um pedaço de carne e o pôs na janela e depois flagrou um gavião “de todo tamanho” se fartando daquela natureza morta. Expressões como “de todo tamanho”, dentre outras tão especialmente mineiras, dão bem o tom dessas Minas Gerais, de montanhas e profundezas feitas por coisas desconhecidas de nós, pobres mortais, mas percebidas por alguns como muito mais preciosas que o minério que batizou a província que virou Estado.

E onde terminar essa crônica preguiçosa? Numa canção que fiz em parceria com outro amigo e colega de MBA, que se chama Luís Henrique Vieira Vaqueiro, que, no começo da madrugada passada, em típica situação de república de estudantes, dedilhando num bar para uns poucos de nós seu belo violão, tocou uma melodia e me desafiou: Mario, faz a letra. Depois eu faço, respondi. E ele: Não. Tem que ser agora. Afinal, a letra foi feita em papéis de anotações de bolso que sempre trago comigo, na hora, como proposto, e ficou assim:

Fosse um país qualquer / se fosse uma mulher / se fosse uma bandeira / se fosse uma canção / um rosto, uma nação.
Era um país qualquer / um rosto, uma mulher / um morro, uma ladeira / amor, declaração / de paz, de escravidão.
Audácia de viver / em um país assim / audácia de te amar / de te ver nascer / de dentro de mim.

Tudo isso não passa de um punhado de meras impressões ao dirigir durante alguns momentos a própria vida. Coisa que, convenhamos, é de todo tamanho.

9.02.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO VINTE E QUATRO -

Rita assistia atônita ao que a televisão mostrava: a cidade onde quase nascera, praticamente destruída por um furacão. Rita desesperava-se e chorava tanto quantos vários de seus compatriotas naqueles momentos, mas, embora estivesse em uma cidade do interior do Brasil, com poucos recursos e baixos índices de desenvolvimento e qualidade de vida, conseguira o que tantos dos de seu país natal não conseguiam: falar com sua família; com sua mãe - por telefone, de Minaçu a Orlando, tudo começando por uma espiral ridícula pendurada na parede, tantas vidas e coisas terminando em outra espiral, monstrenga, imensa espiral feita de ar.

Ricardo V acompanhava a tragédia de Nova Orleans perguntando-se, secretamente: será que sofro mais quando a dor é de país rico? Todos os dias na TV assisto a Tsunamis, Palestinas, Áfricas, Índias, Paquistães, Nordestes... Percebo mais essa dor que vejo agora. Esforçou-se para abstrair-se do fato de ser casado com uma americana, somente para observar, introspectiva e obsessivamente, tão à sua maneira quanto à de Otávia, de quem viveria, como hoje, em 2020, para sempre viúvo, se esta é que era a sua verdade: dor de rico lhe doía mais. De repente uma idéia lhe caiu no colo, nas fuças, no ventre, na nuca: a cultura norte-americana, de tão difundida, independentemente da proximidade, das características de novo-mundo e país-continente em comum com o Brasil, por mais amigos ou conhecidos judeus, nordestinos, negros, hindus e árabes que tivesse, a dor americana, do jazz de Nova Orleans inundado, saxofones, prostitutas, ricos filhos-da-puta ou não, louras, barbies, negros e negras atuando em filmes por pressão e força e talento, todos na súbita desgraça, era como se Nova Orleans, a New Orleans do French Quarter fosse sua. Como sua era o Rio de Janeiro. Como, já àquela altura, era Minaçu. Tudo tão diferente e distante, no entanto, era seu e por isso doía. Não que não doesse o pavor diário palestino, a desgraceira dos homens-bomba, toda a merdice e desgraceira humana; tudo doía, mas era diário – e voltou a perguntar-se: devo mesmo sofrer mais porque agora, como em setembro de 2001, foi nos Estados Unidos, os grandes fodões, os destruidores, predadores, arrogantes imperadores? Choro a dor dos opressores? Claro que não: choro a dor de quem se fodeu, de quem dormiu numa cama e acordou numa imensa poça d’água, na lama, na bosta, no frio, na tristeza, no abandono, na pior espécie de solidão.

E lhe foi assustador que, exatamente naquela noite, quando o noticiário da tragédia do furacão “Katrina” explodia na tela da sua televisão e golpeava tão perto de si tão fundo sua mulher e também a ele, que outra forma de solidão lhe viesse às mãos pelas do filho de 3 anos – uma carta amarelecida e aos pedaços do bisavô, Ricardo Coração dos Outros II, onde ele diz:

“Maria Cristina:

Alguma coisa muito má eu devo ter feito. É assim que me sinto. Foi dedicação demais e, em troca, desdém demais. Nada faz sentido. Sou um homem barbado na frente do espelho, suposto estudante de Direito, ex-noivo, ex-sujeito.

Vou rimar sempre: sou filho de trovador. Pouco me importam esses modernistas de São Paulo, ainda que a eles muito admire, por sua coragem, de desconstruir para melhor reconstruir esta nossa raça.

Fugi do assunto: continuo como quem foi flagrado em crime que não cometeu. Não posso ser chamado de mau amante, sequer: gemias, e gemias com prazer, não me venhas dizer que não, que fingias – porque não fingias. Quem nasceu onde eu nasci conhece de tão perto a verdade, que é capaz como nenhum outro de conhecer a mentira e o fingimento. Não fingiste: gostaste. Gostaste de mim, da minha presença, do meu cheiro, meu contato e tudo o mais que resolvemos juntos arriscar e subverter.

Vai com teu almofadinha; vai e explica a ele tua vergonha. Mostra a ele meus dentes cravados nos bicos dos teus seios, meus dedos, em todos os pedaços do teu corpo.

Não te mando esta carta, porque sou covarde. Porque me sinto como se tivesse partido de mim mesmo, como se ousara rasgar o mundo em três, na frente de seus donos. Como quando quebrei o objeto mais precioso de minha mãe. Como quando, brincando com meu pai, sem querer, quebrei-lhe o braço, quase que para sempre lhe arrancando das mãos o abençoado violão e seu dedilhar encantado.

Não vou morrer; vivo no Século XX. E ainda vou te fotografar sorrindo, porque é sorrindo que te quero mais, ainda que em braços que não são meus – mas a máquina há de ser tão moderna, que há de fotografar por trás dela meu sorriso, maior e mais intenso que o teu.

Não te quero mais, Maria Cristina; já não cometi crime algum; gosto mais de mim e das futuras namoradas e noivas e amantes que amarei, na mesma cama de “república” que te possuí. Saudades de ti. Isso não há como eu negar. Mas, amanhã, farei a revolução e seduzirei a bela criatura que me lava as roupas, que será de mim amada como foste tu.

Talvez eu te mande esta carta. Amanhã saberei.”