7.30.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZENOVE –

Era ainda 2006. Rita voltara de Orlando com Ricardo VI. Encontraram-se no aeroporto de Brasília. Ricardo V beijou a mulher e o filho, desajeitada e apaixonadamente. Haviam optado, em um telefonema, enquanto Rita e Ricardo VI ainda estavam em companhia da mãe de Rita, na Flórida, por fazer o trajeto até Minaçu de automóvel. Uma ponte fora inaugurada no ano anterior, facilitando o acesso de Colinas do Sul a Minaçu, e já havia um bom trecho asfaltado a partir de Brasília para se percorrer o caminho em cerca de quatro a cinco horas.

Na ida de Minaçu a Brasília, enquanto dirigia a camionete moderna e potente para a época, Ricardo V ia-se despedindo da sua solidão. Estava com saudades, como dissera a mais de uma pessoa em Minaçu. Saudades de Rita e do filho.

No trecho não asfaltado, quase bateu de frente com um caminhão, que se deslocava em velocidade totalmente incompatível e incoerente com as condições da estrada e a paisagem. Passado o susto, um felino negro, reluzente, pequeno e bonito, ágil, cruzou seu caminho. Parou para urinar sob o sol desnudo, potente, imponente, a fazer dele, já vencido pela bexiga, homem de cabeça baixa e nuca exposta e submissa aos raios viris da estrela do planeta.

Voltou ao automóvel, abriu a porta traseira da camionete, mastigou um dos sanduíches que uma das empregadas que o mimavam havia preparado, bebeu quase que de um gole só o conteúdo de meia garrafa plástica de água mineral, respirou fundo, arrotou, bateu a porta traseira, abriu a dianteira.

Alguma coisa chamou sua atenção. Estava perdido. Sou mesmo um distraído de merda, como é que vou chegar a tempo? Desesperou-se, pôs o rosto nas mãos, passou as mãos nervosamente nos cabelos, levantou a cabeça novamente. E aí sim surpreendeu-se de verdade: um homem de pé, muito louro e muito alto, camisa branca amarrotada meio solta e meio presa a uma justa calça jeans fotografou-o - a ele, Ricardo Coração dos Outros V, ainda em pleno gozo do anonimato e da recente urinada e subseqüente aflição da sensação de estar perdido no meio da paisagem agreste do cerrado e das chapadas do centro-oeste brasileiro, por trás da camionete de origem japonesa. Vermelha. Como sua nuca e seu rosto, que tanto queriam suar e não conseguiam: não havia umidade suficiente.

Ricardo moveu-se contornando o carro e avançando na direção do fotógrafo - que se fora. Para onde? Ricardo V não sabia. Entretanto, aliviou-se de novo: percebeu que não havia se perdido, apenas por pura memória: é um incorrigível distraído e ao mesmo tempo confiante em excesso da memória visual e sua sensibilidade, revelada principalmente no dom para o violão que herdou de Ricardo Coração dos Outros, que fugiu com Olga, que viveu com ela não muito longe dali, em torno de cem anos antes daqueles momentos em que se sentia exalando e respirando poeira, queijo, trigo e urina, uma espécie de medo dentro de si, no rosto e na nuca, intensa vermelhidão, secura na garganta e o desagradável desconhecimento somado à surpresa de ter sido fotografado por alguém misterioso e fugidio.

De nada disso falou a Rita, no caminho de volta a Minaçu, depois de pernoitar em hotel suntuoso e prematuramente velhusco na capital brasileira. Mas, sem que ela e o pequeno filho pudessem compreender porque, Ricardo Coração dos Outros V, em todo o percurso, falava e ouvia o que lhe era dito movendo a cabeça de um lado ao outro, procurando, muito mais que por caminhões e felinos, ou mesmo um lugar para esvaziar a bexiga, um fotógrafo.
Quem diabos era aquele merda? – assim registrou em seus memoriais no hard-disk do note-book sobre a mesa de seu quarto, assim que chegou de vola para casa.

7.28.2005

CADERNO DE BOLSO

Cronistas e poetas às vezes falam de si, de suas vivências, sem pretensão na maioria dos casos senão a de dividi-las. Sexta-feira passada, entrei numa papelaria, porque sou viciado nelas. Não resisto a um caderno, mesmo que quase sempre ele permaneça virgem na minha casa, aguardando pacientemente por um primeiro rabisco. Gostei de um que cabe no bolso de um casaco, em cuja capa está escrito MOB. Perguntei ao vendedor o que significava MOB. Ah, se eu soubesse - foi a resposta, em tom de gozação, que ele me deu. Para quem você vai comprar? Para mim, respondi, sou poeta, gosto de ter um caderno por perto. Então escreve uma poesia para eu dar para minha namorada. E fiquei com o compromisso de escrever uma poesia do Cacau, de 15 anos, para Mayana, de 14. O namoro já tem 10 dias, ele me disse. Pensei em duas possibilidades. Na primeira, ele revelará que quem escreveu foi um outro, alguém que não teve ainda o prazer de conhecer Mayana. Nesta, direi assim:

Mayana
Manhã de inverno
Que sejas também manhã
Do nosso próximo verão.

Mayana querida
Segura minha mão
Que minha mão tem frio
Sem a tua.

Mayana menina
Serei teu menino
Tantos invernos e verões
Que assim me quiseres.

Que o dia seja lindo e a noite mais ainda
Sonhando meu sonho, chamado Mayana.

Na outra possibilidade, na qual ele decidirá dizer que o poema é dele, direi a mesma coisa – pois quem sou eu para decidir por quem me escreveu poesia de muito mais valor, pedindo-me para fazer o que tanto gosto, escrevendo num papel assim:
CACAU = 15 ANOS
MAYANA = 14 ANOS
OBRIGADO.
Nesses tempos de Bagdás destruídas e Londres explosivas, políticos brasileiros a demonstrar que o falso moralismo não existe porque todo moralismo é falso, um presidente comemorando em péssima hora seu feito pessoal quando falsamente prometeu que vitória e comemoração seriam coletivas como nunca antes, que compete ética conosco, bradando imbecil e desagradavelmente “Nesse país, duvido que exista alguém mais ético que eu”, - quem agradece, Cacau, sou eu.

Muito obrigado, Cacau.

7.23.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS:UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGI NOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZOITO –

Descobriram que o ouro ainda existia, mas não era sua vocação a mineração com mercúrio nem a vida para sempre nômade. Cavalcante já alcançara a condição de Comarca. Tinha comércio, importava toucinho, açúcar, aguardente, sal, tecidos; exportava gado. Gado – por que não? A terra do cerrado não é boa, mas viram muitas vacas e muitos bois por lá – magrinhos, mas viram, e gado, tocado, anda; podia chegar na Bahia. Viram que as modinhas de Ricardo ficariam para saraus só dos dois ou de pouquíssimos outros, peregrinos como eles, fazendeiros e sitiantes já estabelecidos, quilombolas kalungas, índios aculturados. Com os não-aculturados, era preciso cuidado – pois davam muito mais trabalho para morrer ou aquietar-se em aldeias que haviam dado os caiapós dos tempos dos Anhangüera.

A fundição do Arraial de São Felix havia sido transferida para Cavalcante. Fabricavam-se machados, enxadas, artefatos. As últimas economias foram para uma porção de terra na beira do rio Tocantins, onde era possível pescar, cultivar a terra, derrubando a mata e a capoeira, fazendo lenha, tocando fogo, tudo de maio a setembro, período seco, de secura na boca e tontura na cabeça, para plantar arroz e milho primeiro e depois feijão durante as chuvas, de outubro até abril. Esse clima é o mesmo até hoje, e o método de cultivo da terra ainda permaneceu até a primeira década deste século XXI, quando cessaram as queimadas do solo brasileiro.

Viram muitos rostos tomados pela bexiga. Deram sorte de terem sido vacinados no Rio de Janeiro, recurso que ficou disponível ainda no império (1804, nem eram nascidos), apesar do pouco caso tanto dos imperadores quanto dos republicanos com a saúde, desde aqueles tempos até bem pouco tempo; apesar da vacinação ter sido hábito ignorado pelas autoridades e população, tão desinformada – mas Olga e Ricardo Coração dos Outros eram esclarecidos.

Viram muitas faces famintas, corpos deformados, mentes débeis, tudo da desnutrição, porque não houve política de abastecimento nem no Segundo Império, nem na República, até a primeira década deste século XXI. Mas houve pelo menos um governante de outrora com visão: Maurício de Nassau, em 15 de abril de 1640, ordenou que nenhum senhor de engenho começasse a produção na safra seguinte (agosto) sem ter primeiro plantado 300 covas de mandioca por cada negro-negra que possuísse. Havia que dar de comer aos escravos, porque, caso contrário, não os haveria.

Casaram-se na Igreja.

Em 1900, Olga teve um desarranjo intestinal que durou dias e noites, tendo sobrevivido não se sabe se por ajuda de prático habilidoso, rezadeira milagrosa ou se por erva de pagé feiticeiro. (Para Olga, viúva de médico.) Passaram bom tempo quase que só comendo peixe, tendo muito ainda a aprender. Comprar vaquinhas e bois, com que dinheiro? Como ter acesso aos bens que pai e marido haviam deixado para Olga, naquele fim de mundo? Compraram fiado, abriram uma venda, venderam roupa feita por Olga, plantaram mais pra comer que vender, pois quase todos plantavam pra comer. Vender para a capital da província ou para a Bahia ou o Pará era tão complicado e caro, que ninguém trabalhava mais para ganhar mais porque, se produzissem mais, desperdiçariam mais. Assim foi em muitos recantos do Brasil, inclusive naquela região, até a primeira década deste século XXI. Na opinião de Ricardo V, como consta em seu best-seller prevendo a revolução de 2017, “A cultura da fome não está na preguiça nem em nenhum outro dos tantos motivos apregoados por profissionais da política, mas na falta de infra-estrutura, na mais óbvia percepção de que é preciso existir mercado que corresponda à produção, descoberta que foi dada ao chamado agro-negócio que despontou na virada dos séculos XX e XXI, inibida a pequenos agricultores, sabe-se lá se por burrice ou maldade.”.

Algum preparo Ricardo e Olga trouxeram da capital da república: sabiam aprender; sabiam ensinar. Nessa troca, que não envolveu moeda alguma, criaram amizades, criaram talentos desconhecidos para comprar um boi e uma vaca, mais duas vacas, dois bois, semear a terra no período seco e plantar no chuvoso, comer peixe com farinha, transportar bois até a Bahia, beber e vender leite das suas vacas, viajar ao Rio e resgatar a herança de Olga e resistir de lá não permanecer e retornar e descobrir dentro de si pessoas que jamais pensaram que existissem. Inovaram: plantaram trigo, comeram pão – incomum, na região, naquele tempo. Associavam-se: a escravatura se fora e o capitalismo ainda não chegara. Família, agregado, era assim que se vivia.

Tiveram Ricardo Coração dos Outros II em clima de grande festa; permaneciam milagrosamente distantes dos conflitos entre mineiros, estancieiros, e entre estes e os índios; por opção, distanciaram-se também da república, das desavenças entre políticos, teorias de uns, baixezas de outros. Descobriram o gosto de morar naquele lugar tão inóspito e ao mesmo tempo deslumbrante, no sopé da Chapada dos Veadeiros. Assim foi.

7.18.2005

O PAÍS DO PUDOR

Chico Buarque observou em “Benjamim” a situação do sujeito que vai ao banheiro e evita o mictório porque o do lado já está ocupado e vai ao vaso fazer xixi, mas deixa a porta aberta, por pudor ao pudor.

Somos pudicos. Usamos sungas apertadas, nossas mulheres, biquínis fio-dental, o Gabeira (em outros tempos), sunga de tricô, mas quem fica pelado na praia é europeu. Nós, brasileiros, só ficamos pelados na praia em dia de temporal, de raios mortíferos a nos querer acertar, atingir e matar dentro d’água - porque nós, gozadores incuráveis, principalmente da Divindade, fazemos questão da exposição e risco a eles, raios que nos partam, mas que nos partam nus. Outras raras situações em que ficamos nus? Em total solidão ou intimidade; absoluta pobreza ou ingenuidade.

Nelson Rodrigues disse que toda nudez será castigada, mas, como sabia muito bem, menos no cinema nacional. Nossos filmes são explícitos na nudez, nossas atrizes dão vida a mulheres que tiram a roupa naturalmente para fazer amor, porque fazer amor é natural e amor foi feito para ser feito sem roupa. Em filmes americanos, mulheres fazem sexo de sutiã, a não ser que o cachê seja alto o bastante e muito bem articulado com pesquisas de público e de censura etária, a apontar que mostrar as tetas (teats) da atriz serão compensadoras para atriz e patrocinadores. Quando o filme é sueco, alemão ou dinamarquês, a nudez nada mais é que nudez, ainda que com pitadas filosóficas, fáusticas, gœtianas, dignas de castigos calvinistas (grande Nelson Rodrigues, que, certamente de propósito, errou de país). Já em filmes franceses, a nudez é cheia de noirs, nuances - mas quem saberá de noirs, amor e nuances mais que os misturados, os que geram mulheres de bundas grandes, de sangue indígena, negro e europeu?

Portanto, somos pudicos: temos pudor, a não ser no ato do amor.

A não ser no ato do roubo.

Nórdicos, anglo-saxões, orientais, africanos, indígenas, alguns dos outros latinos, todos têm ladrões entre eles, mas, entre eles, os ladrões, quando descobertos, muito mais se envergonham que qualquer ser desnudado ou mais causam espanto que qualquer América descoberta nua. Matam-se, enfiam em si mesmos facas, flechas, revólveres, caminhões, mares desnudos e vorazes, ônibus, táxis, lápis, viadutos. Aqueles que dentre nós a nós nos roubam, ufanam-se: roubar é certo; é correto; é inteligente.

Não é possível associar o ato de amar ao de roubar. Por mais tentadora seja a metáfora do roubo do olhar e do beijo, é metáfora, nada mais que metáfora. Essa vileza vilipendiosa, nojenta, escancarada, mais que tudo isso, assumida, resolvida, explicada e justificada, a do “Chame o ladrão” do Chico Buarque, a do “Sou, mas quem não é” do outro Chico, o Anísio, é o anti-amor, o anti-Brasil, o anti-naturalidade no ato de amar, o anti-pudor de usar sunga e só se desnudar sob nórdicos raios de Thor. Não é possível, nesses tempos de 2005, que uma vez mais nos limitemos a assistir e achar graça desse pútrido despudor, na pátria dos pudicos, dos amantes de corpo inteiro, do amor descomplicado e brasileiro, da mátria sensual de sangue misturado e bunda grande. Merda!

7.15.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZESSETE –

Aos 55 anos, Ricardo IV estava com um caso complicado. Nada advocatício; nada mais que um caso; um caso de amor, que tinha de esconder de Sérgia, das gêmeas e do filho. (O neto ainda era quase um bebê.) Do outro lado, isto é, do lado dela, da amante, o que Ricardo IV queria era o extremo oposto e exposto: impressionar. Provocará certo desconforto isto ser agora revelado, em 2020, pois ele está vivo, como viva está sua mulher, Sérgia. Mas tudo aconteceu há 15 anos; era 2005 – tempo em que a Internet fazia quase o mesmo papel, já com grande eficiência, que fazem hoje a Tera-portal Mundial (TPM©) e sua concorrente, a 1012.

No motel, Ricardo Coração dos Outros IV acessou a Internet pelo terminal disponível no quarto e devidamente conectado – diferencial oferecido por aquela rede de motéis (pertencente a um partido político, em nome de um de seus avalistas) em relação à concorrência. Durante o banho da amante (seu nome não pode ser revelado), procurou por um tema que ela – médica – precisava pesquisar. (Só para agradar, impressionar, expor-se - no gênero amante-companheiro.) Sem querer, por intrincadas vias, Ricardo IV achou um pouco da história de seu bisavô, Ricardo Coração dos Outros (primeiro e único, em vários aspectos) na rede, levando a ele, Ricardo Coração dos Outros IV, em nave liberta de virtual foguete propulsor, a um passado que relutava em visitar, de sua origem mulata e irregular, aventureira, surgida de um ímpeto da bisavó, Olga, que arrastou o bisavô violonista e compositor até Cavalcante, separada de Minaçu (cidade inexistente no tempo dos bisavós) por serras, planaltos e águas, Minaçu, onde o filho, Ricardo V, resolvera morar, por conta de uma americana curiosa pelo que restara da tribo avá-canoeiro.

Quantos pensamentos se apresentam em tão poucos momentos, quantas lembranças?, perguntava-se em flashes muito rápidos a médica que tomava banho e não queria lembrar do namorado, enquanto seu amante permanecia no quarto da suíte do motel, sem que ela pudesse saber de quantos pensamentos e lembranças se passavam na cabeça dele naqueles instantes, enquanto ela se ensaboava e se ensaboava e se ensaboava, sem saber do que, afinal, queria e precisava tanto limpar-se, purificar-se.

- É como se eu tivesse aprendido a verdadeiramente fazer amor, compreender o sexo, com você.

- Por quê? – ela perguntou a Ricardo IV, na primeira vez em que ficaram juntos e sozinhos e nus, um mês antes, após a consumação do primeiro intercurso entre eles, na terminologia que ele lembrava, não sabia se dos livros de Direito dele, de Sociologia de Sérgia ou de Medicina dela, sua namorada, sonho não sonhado por ele, ele, que bem vivia bom e sensual casamento com a mulher, Sérgia, mãe das gêmeas e do filho, todos tão queridos.

(Toda a teoria libertadora de Sérgia, ele tinha certeza, cairia por terra se e quando ela soubesse do caso dele com... Não se pode revelar o nome.)

- Pela naturalidade que você tem de tirar a roupa, de ficar nua, de me amar, de levantar e sair andando nua pra fazer xixi – Ricardo IV respondeu, naquela primeira vez dos dois.

- Mas não é assim com sua mulher? Não foi assim com suas outras namoradas? Não é assim, não é simples desse jeito, não é normal fazer amor, ficarmos nus, tomar banho, fazer xixi?

Era ainda o tempo da AIDS, mas já havia bons medicamentos para a manter controlada, pelo menos para quem, contraída a doença, tivesse acesso a eles. Eram também os anos do Viagra. Ricardo IV era homem de sorte: ainda não tivera contato com nenhuma das duas terríveis doenças e respectivos medicamentos para o simples ato de amar. E era o tempo áureo da camisinha, o preservativo masculino, que valia mais que a mais benta das águas, mais que a mais benzida das hóstias (Ricardo IV e Sérgia são católicos).

Sentou-se nu, na cama, depois de anotar em uma caderneta de bolso sobre a mesa o endereço da Internet onde encontrara uma tese que podia interessar à namorada, e alisou seus bigodes negros, seus lábios grossos, e pensou: “Gosto de ser mulato.”

Sua amante finalmente saiu de dentro do banheiro, nua, passando uma toalha no corpo e trazendo outra, enrolada nos cabelos. Morena, sexy, muito sexy.

Ricardo IV, sentado na beira da cama, disse:

- Eu te amo.

Ao celular.

7.12.2005

SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO

“Cinema, para mim, é diversão; de coisa séria, basta a vida.” Você já disse essa frase. Você pode ser um distraído, uma farsante, um medíocre, alguém de alma leve ou de inspirado gosto pelas artes e em especial pela sétima, alguém a quem caibam importantíssimas e transformadoras decisões, capazes de afetar a bolsa de valores ou a de quem se distrai - você já disse essa frase. Não quer confessar? Admita: já quis dizê-la. Também não? Pelo menos não despreze quem já a disse alguma vez. Por quê? Pelos extremos. Se você admira profundamente as artes, perceba ser arte admirar quem a admira e quem a ignora; ou, se a bolsa depende da sua atenção, preste atenção àqueles de cuja desatenção você tira proveito.

Agora, venha conosco. E procure observar a si próprio, por alguns instantes, compreendendo o método e propósito que aqui são propostos. A frase “Cinema, para mim, é diversão; de coisa séria, basta a vida” é associada à mediocridade. Você, de um dos extremos, com essa sensibilidade artística ou decisória, - socrática e dialeticamente, medíocre não é. Mas outros o são - e o método propõe o oposto: no lugar da mediocridade, os extremos. O propósito, você perceberá. Imagine-se, assim, com seu elevado senso de concentração, abstração ou subtração em uma ou mais das seguintes situações a seguir.

1) Todos os dias, você almoça no mesmo lugar;
2) Todas as noites, você janta no mesmo lugar;
3) Seus almoços e jantares se repetem não só nos lugares, mas nos cardápios e companhias;
4) Você estica, dobra e alisa o jornal quando o lê, despertando a atenção de quem não lê o mesmo jornal – ou, pelo menos, o mesmo exemplar de jornal no mesmo instante - que você está lendo;
5) Você vive a situação 4, no lugar de quem não tem o jornal nas mãos. Todos os dias.

Adivinhamos: você é fanático por Hitchcock.

6) Faminto ou não, você quer saber o que comerá logo mais. Resposta: farofa, arroz, salada... Mas, afinal, rúcula? Carne, peixe ou frango? Você fica sem saber;
7) Alguém que exerce qualquer espécie de poder sobre você comunica que haverá um encontro de vocês dois hoje, às 3 da tarde. Agora, são 9 da manhã. Você pergunta qual o motivo e a reposta é: “Às 3.”;
8) Hoje faz sol e, hoje, você precisa de amanhã e, amanhã, você precisa de sol e, hoje, ficou sabendo que poderá fazer sol amanhã, mas há previsão de uma frente fria, acompanhada de possíveis chuvas esparsas, entre amanhã e depois de amanhã;
9) O elevador estava subindo. Apagou a luz e ele parou. Agora, andou;
10) Rumores de um assalto à mão armada e troca de tiros perto de onde você está, mas, perto quanto, ninguém sabe dizer.

E aqui você está. Na locadora de filmes. Agora. Exatamente agora. Você se identificou com uma ou mais das situações 1 a 5, acima, e pegou o mesmo filme de comédia que o sistema informa que você já assistiu 3 vezes.

Quem é você?

7.08.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO DEZESSEIS –

Atravessar o Paranaíba só não foi pior do que teria sido navegá-lo longitudinalmente, na direção norte. “Sabe lá Deus como, conseguimos atravessar o rio e chegar à outra margem, à outra província: Goiás! Para quê e para onde exatamente, não sabemos – e como é bom não saber!”. Pela caligrafia destoante da que se atribui a Ricardo Coração dos Outros e pelo tom romântico e aventuresco, supõe-se que esse trecho dos escritos achados da odisséia de Ricardo e Olga fosse dela e não dele.

Daí para frente, percebe-se que tomaram rumo pelos caminhos rasgados em tempos idos, quando aquele chão era todo tupi-guarani, de algumas de suas diferentes famílias, diferentes aldeias, variadas tribos, e foi virando Anhangüera.

Anhangüera, Bartolomeu Bueno, pai; Anhangüera, Bartolomeu Bueno da Silva, filho - paulistas que atravessaram aquele chão até o rio Araguaia e voltaram e encontraram a tribo do povo Goiá. Goiá; Goiás. Pai e filho fizeram o trajeto em 1682; trajeto que o filho repetiria sem o pai, quarenta anos depois. Anhangüera: Diabo Velho ou Espírito Maligno - assim os teriam batizado os Goiás.

Em outros trechos daqueles escritos, percebe-se o descontentamento e desconforto de Ricardo. Por exemplo: “Uma desgraceira é o que é a vida de gente que não a planeja, que não herda, ou, quando herda, desdenha ou não sabe do tamanho da herança, ou a desafia - seja ela dinheiro, talento ou porcaria.”.

Como conta Lima Barreto, Ricardo era homem da Zona Norte do Rio de Janeiro, mulato, discriminado por causa do violão e, às tantas, após muita insistência e sacrifício e infindáveis saraus, admirado, até em Botafogo, seu grande sonho de conquista, pelas modinhas que compunha, com o mesmo malvisto violão. Metera-se na revolta contra Floriano do lado dele, governista, completamente desconfortável – como provavelmente teria sido, não se sabe se em maior ou menor grau, se tivesse ficado do lado oposto, contra Floriano.

Agora, trilhava caminhos e outros desconfortos jamais imaginados nem desejados, em companhia de mulher que tão somente conhecia, antes do rompante que ambos tiveram ao se encontrarem após deixarem Policarpo à própria sorte em respeito à sua dignidade, com a qual simplesmente compartilhava alguns laços de social convívio, sendo o principal o próprio Policarpo Quaresma, aluno de violão de Ricardo e padrinho de Olga.

Mas - agora - amava aquela mulher; percebera nela uma aventura nunca imaginada e que com ela ia dividindo.

Muito difícil saber qual dos desafios teria sido maior que o outro: se o de Policarpo Quaresma, que, em sua fase entusiástica pelas coisas pátrias, propôs que o Tupi-guarani passasse a ser a língua oficial brasileira (e pagou caro por isso); ou se o deles, que, tão urbanos, cosmopolitas da capital do Brasil, saíram sem rumo ou destino, sem a mínima noção geográfica do país onde nasceram, a penetrar interiores tão inóspitos, indígenas, montanhosos, caudalosos, tenebrosos, a, muito mais que arrancar mato do chão, no chão se agacharem a fazer suas necessidades, a comer com as mãos, a conviver com gente das mais variadas origens, tropeiros tocando boiada, buscando ouro, evitando tocaia, a ficar dias e noites sem banho, a se banharem alucinados na frente de quem quer que fosse, molhando as vestes e, ao mesmo tempo, exibindo seios e bundas e abraços a quem quer que estivesse com e como eles, nas águas de um rio ou debaixo de agressoras e prazerosas e sensuais e adoráveis chuvas.

Uma beira de rio, uma tenda, uma fogueira, uma aguardente, às vezes tudo isso desamedrontava a noite ou aplacava o sol ou uma dor nas entranhas da barriga ou da cabeça ou do próprio medo ou da própria fome.

Amavam-se às noites sem pudor dos gemidos, mais de exaustão que de prazer, várias vezes foi assim, porque assim Ricardo deixou registrado em versos apagados e amarelecidos, pela chuva, pelo sol.

Em uma passagem, está escrito, na mesma caligrafia que se supõe (e só pode ser) de Olga:

“Hoje, soltei um traque na frente dele; acho que ele ouviu. Mas, graças a Deus, ventava!”

E a história do Brasil ia acontecendo – e o que isso importava de fato a eles e àqueles outros tropeiros e aventureiros como eles?

Pois naquelas páginas da insana travessia do Rio Paranaíba à província de Goiás e seu caminhar longitudinal pelos caminhos dos Anhangüera, em meio a desabafos e confidências, Ricardo Coração dos Outros deixou o seguinte sexteto, sem pauta musical:

Morresse eu agora
Morreria em mim agora
Aquilo que mais me foi felicidade:
Essa loucura,
Essa doçuraDesvairada insanidade.

7.04.2005

A MULHER FATAL

Você, que é mulher e heterossexual, já tem consciência de que ela lhe virou a cabeça. Você, que se acha esperto e resolvido, capaz de escolher quem vai levar para casa hoje à noite, com grandes perspectivas de um desvio favorável, saiba que, na esquina da sua escolha para o argumento mais convincente... é ela que estará esperando por você. Acredite: independentemente do seu sucesso no desvio pretendido, ela estará presente. Você e ela; ou vocês dois e ela; assim será sua noite: com ela. E seu dia também.

Você é fumante?: fumará dois cigarros a mais. Dois copos de cerveja a mais lhe darão a insuportável sensação de uma grotesca barriga. Duas taças de vinho que você não queria lhe trarão uma azia acompanhada de dor na nuca. Duas doses de uisque além da conta ela fará você beber. Mas lhe dará uma espécie de prazer que nenhuma outra será ou foi capaz de dar.

Nenhum homem deu ou dará a você a mesma sensação, de companhia, solidariedade, sofreguidão. E solidão.

Não busque na cabeça fiapos de cabelo branco: ela já os mostrou a você.

Volte de pressa para casa - ela está guardando o que você esqueceu, pouco importa se sua carteira ou consciência.

Engula um quibe a mais, um vento, um cuspe, uma secura indescritível, um ou dois comprimidos a mais – porque ela está com você.

Com você e com ela – os dois, nus, apaixonados, pouco importa: ela, num repente, vai aparecer, acelerando sua respiração, estragando tudo ou melhorando tudo um pouco.

Na cama, o dia seguinte lhe parecerá o inferno, a infinita vergonha, a derrota para o outro ou a outra: é ela que está do seu lado.

Caminhe, passeie de bicicleta, faça ioga, natação, ginástica, morra de fome na África mais brasileira que existir ou na Índia mais santa e promíscua que houver - ela estará por lá.

Navegue e pesque na sua nova lancha, comande o leme, arredonde a terra, ela está.

Apaixone-se pelo mais carismático, se entregue você por inteiro à mais feminina das amantes, assuma a forma de amor para a qual você foi programado ou predestinada em seu DNA, mas convença-se: o adultério é inevitável, a transgressão da sua programada preferência é irrevogável, serão sempre pelo menos três, mais provavelmente, quatro.

Esqueça Deus. Ele pode ou não estar presente – mas, ela, estará. A morte, talvez lhe falte; ela, não. O ar lhe pode faltar; sua ansiedade, não.

Me diga que não.

7.01.2005

A DINASTIA DE RICARDO CORAÇÃO DOS OUTROS: UM BRASIL QUE LIMA BARRETO IMAGINOU E QUASE ADIVINHOU

Romance Inédito de Mario Benevides - Brasil, 2005

- CAPÍTULO QUINZE –

Depois da incompreensível mas incisiva insistência dos patrocinadores americanos de seus escritos para que permanecessem morando em Minaçu, em 2006, Ricardo V passou a caminhar pela cidade em horários variados, sem dar nenhuma satisfação à mulher, Rita – que se magoou com o distanciamento do marido e partiu para Orlando, levando o filho, Ricardo VI, para visitar sua avó americana. Ricardo V ficou exatamente como queria ficar: só.

Percebia aos poucos que gostava de permanecer ali; de andar pelas ruas de casas quase iguais na vila construída pela estatal da primeira hidrelétrica; pelas do centro, que lhe passavam uma inexplicável sensação de escuridão, mesmo às duas da tarde; de visitar comunidades reassentadas pelas hidrelétricas e outras, como vilas de ex-garimpeiros; de observar conflitos entre as empresas das hidrelétricas e movimentos que se postavam como defensores dos atingidos por elas; dos boatos sobre infiltrações de estrangeiros em busca sabe-se lá de que riqueza material ou sociológica ou mística; do permanente questionamento sobre a mina de amianto crisotila, em torno da qual a cidade surgira; de voltar para sua casa de madeira e ar condicionado ligado a toda potência e deitar-se no escuro, incomodado com as notícias locais da poderosa, rica e temida agiotagem, de vendetas, assassinatos a sangue frio, matadores de aluguel. Era um homem local, definitivamente não globalizado, ainda que assistisse à tv.

Custou a compreender intimamente as razões que o levavam a crer tão profundamente que a revolução de idéias, da política amadora, surgiria ali.

As moças de bicicleta e as moças de motocicleta. Gente como ele, às vezes, no meio da tarde, sem fazer nada, encostada num muro. Um lugar parado; uma vegetação parada, seca, àquela época do ano. Mas ainda verde e, quando era verde, a paisagem era muito bonita. Mulheres humildes, de trinta a quarenta anos, aparentando mais, de postura dócil e firme, ao mesmo tempo. Uma geração local de adolescentes criativa, independente. Jovens profissionais, vindos de várias partes do país, mas muito principalmente de Goiânia, com sólida formação. Minaçu: para aquele carioca, um mistério.

Em casa, era mimado, por duas empregadas domésticas educadas e bonitas, uma muito loura e a outra, feita de mistura de imensa felicidade: mulata, índia, alta; “ela tem um bundão” – vivia repetindo em seu íntimo a fala de um personagem de Mar Morto, de Jorge Amado, que lera aos treze anos.

Racionalizava: não queria mais cidades grandes; sentia frio, no Sul; as capitais do Nordeste já eram cidades grandes e as do seu interior, pobres e quentes e áridas mais que suportaria. Havia Orlando, mas era longe, muito longe, Orlando; principalmente, demasiadamente diferente de tudo que podia assimilar como lugar de se morar. Praia: não há mar, em Minaçu! Mas consigo viver sem ele, misteriosamente para mim, que tanto gosto do mar – registrou Ricardo V em alguns de seus desorganizados arquivos eletrônicos. Viajava com freqüência - mas era para Minaçu que voltava.

Publicou seu livro em 2009. Em 2010, Ricardo desapontou-se, ao perceber que a convulsão não era nem de perto a revolução que previra para 2017, nascida do interior do Brasil, do seu Centro-oeste. A convulsão foi o que se sabe: um quebra-quebra generalizado, um trocar de tiros insano nas cidades grandes, mais confrontos armados em regiões rurais, até mais desenvolvidas que aquela. Políticos a se acusarem, a se defenderem e a se esbofetearem sem pudor ou valentia, missões estrangeiras, dinheiro emprestado pelo mundo, campanhas de desarmamento, distribuição emergencial de alimentos, racionamento de energia, acordos com o tráfico, legalização parcial das drogas, empregos para ex-traficantes, um clima falso de falsa trégua. Em Minaçu, nem um tiro sequer, a não ser os costumeiros, das vendetas, etc.. Custou a compreender porque diziam – seu editor, a crítica, várias pessoas em diferentes lugares - que as vendas do livro dispararam exatamente por causa da convulsão, se esta era o oposto do que imaginara: nada de violência; nada de metrópoles inspirando a grande sonhada transformação; idéias, interiores, uma voz de dentro da alma brasileira a sussurrar primeiro e a depois se revelar, uníssona, consistente, macia, bonita - de tão persuasiva e sedutora, convincente a tal ponto que invencível.

Mas ainda não era 2017.

Bares muito diferentes dos que conhecia ao redor do mundo, mas bares; para um boêmio quase abstêmio, como ele, onde tocava seu violão sem qualquer compromisso, eram bons.

E foi em Minaçu que Ricardo Coração dos Outros V foi ficando, às vezes só, às vezes em companhia da mulher e do filho, das empregadas, da pequena sociedade que freqüentava – juiz, transformadora juíza, promotor, prefeito, chefes das usinas e da mineração de amianto, professora de geografia, tenente, empresária de festas, exímia cozinheira; agiotas, matadores, prepotentes. Com estes, bom dia, bom dia; não mais – mas não menos. Os donos e freqüentadores dos bares. A todos via por um filtro de pensamento distante e às vezes próximo; por todos era gostado, mesmo antes do sucesso do seu livro, que possivelmente trouxe alguma curiosidade do resto do país pela região onde seu autor morava.

Mas era a região do cerrado - que sequer precisava de seu livro para chamar atenção.

Mas Minaçu era longe, muito longe, Minaçu.